Um desprezo alarmante

Quando comparado com os principais arquitectos do nazi-fascismo, Trump é aparentemente menos perigoso por ser literalmente desnorteado, mostrando-se incapaz de construir um corpo ideológico consistente e um programa de acção; mas a sua perigosidade não deve ser subestimada.

Numa declaração difundida a partir do hospital onde esteve internado, Donald Trump afirmou com satisfação que estava a aprender muito sobre a covid-19 porque se encontrava agora na “verdadeira escola” e não na “escola dos livros”.

A afirmação pode parecer simples graçola com o mero intuito de passar imagem favorável. Mas, embora sendo também isso, não é apenas isso; não se esgota nessa intenção, já por si reveladora de um desprezo – a obtusa secundarização do primário: a pandemia que abala o mundo, que mata, que empobrece, que espalha sofrimento. Há outro conteúdo bem mais relevante e que confere acrescida gravidade às palavras publicamente endereçadas ao povo americano, bem como à população mundial: um profundo e sentido desprezo pela Cultura. Nele devemos centrar a atenção.

A “escola dos livros” é espaço nobre de construção do homem culto, da cultura humanística, da elevação intelectual, do conhecimento aprofundado, do livre pensamento, do espírito universal. É tudo isto que Trump e os seus acólitos desprezam por completo.

Mais ainda importa não descorar a força política desta atitude de menosprezo pelo intelecttus. Enorme força. No entanto, essa pujança é desconsiderada e até por vezes ignorada pelos que honram o intelecto. Repare-se que, perante o assanhado despautério trumpista, muitos dos opositores reagem troçando, rindo, chacoteando, ou então recorrendo ao encolher de ombros conformista.

Entende-se a espontaneidade da reacção de oposição a um discurso inqualificável, como é o do Presidente dos EUA; mas, na verdade, essa atitude zombeteira é perigosa, por derivar de um erro grosseiro: o de confundir empobrecimento e simplismo do discurso com tontice inócua (inconsequente). Este erro estorva a percepção de que o empobrecimento intelectual do discurso pode fortalecer a sua capacidade de influir na vontade dos seres humanos. Essencial trunfo político. Uma asserção néscia pode ser “inteligente” em função do objectivo traçado e do contexto histórico. É funcionalmente clever, por ser uma estupidez que serve inteligentemente, produz efeito. Em Mein Kampf, Adolf Hitler faz a apologia do abaixamento mental, sublinhando a utilidade política de ajustar o discurso “à capacidade receptiva do menos intelectual daqueles a quem se pretende que seja endereçado”. A direita antidemocrática, dentro e fora dos EUA, replica, no essencial, o modelo estratégico do Führer, bem como de outros construtores do totalitarismo gerador da organização social do Mal e associado às grandes tragédias políticas da história.

Estamos a viver novo momento de compilação das melhores receitas para a calamidade – com a agravante de esse acontecer não estar ainda inscrito na consciência colectiva.

O desprezo pela Cultura, pela intelectualidade, pela Ciência e o ataque sistemático às suas representações institucionais é uma forma de promover a polarização irracional e o conflito ideológico enraivecido, ao mesmo tempo que suprime a discussão política racional, a polémica fundamentada (pilar da democracia). Exemplo maior é o da anulação da historiografia substituindo-a por uma mitologia glorificadora. Uma área do conhecimento, a História, ciência social e humana, é trocada pela propaganda exaltada. E é imensamente mais fácil erigir fantasias ou crenças do que fazer ciência. Daí o sucesso dos shows de ignorância, em que o efeito se sobrepõe ao argumento explicativo racional.

Quando comparado com os principais arquitectos do nazi-fascismo, Trump é aparentemente menos perigoso por ser literalmente desnorteado, mostrando-se incapaz de construir um corpo ideológico consistente e um programa de acção; mas a sua perigosidade não deve ser subestimada, porque também ele é um deficiente moral, encarnando, como nenhum outro na história recente, o primado político das emoções e das paixões irracionais em detrimento dos argumentos racionais, sendo utilizado pelos totalitários norteados como eficaz agente da confusão – sujeito que enevoa a verdade, a informação e até a própria realidade.

Trump é modelo de vulgaridade e obscenidade deliberadas. Ele é inimigo da “escola dos livros” porque é inimigo da democracia; e ameaça a democracia ao ser contra a “escola dos livros”. Inculca ódio à erudição, ao trabalho intelectual e aos intelectuais. Promove-se assim a estupidificação, a mente crédula e dependente, celebra-se a ignorância. É o assassinato das elites cultas seguido da consagração de uma classe dominante inculta.

Este desprezo asfixia o programa da Aufklärung, do Iluminismo, enunciado por Kant como sendo “a saída do homem da sua menoridade”. 

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