Parir em casa (ou o elogio da irresponsabilidade)

O meu respeito pelas escolhas alheias acaba no exacto momento em que essas escolham podem pôr em risco a vida e a segurança das crianças. E neste contexto há dois pontos “sagrados”: a vacinação e o parto hospitalar.

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"A solução passa por formar os profissionais e humanizar os serviços, nunca por parir em casa" Nelson Garrido

Na semana passada, uma amiga pediatra fez uma publicação desesperada nas redes sociais: estando a trabalhar no INEM, tinha acabado de deixar no hospital, sedado e ventilado após manobras de reanimação, um recém-nascido que, por escolha materna, veio ao mundo em casa. E ela pedia para as mulheres pensarem duas vezes, para reflectirem a sério sobre os riscos a que se expunham a elas e aos filhos. Fazia este pedido num tom triste e cansado, o tom de quem passou horas a lutar para manter viva uma criança que, nascida em meio hospitalar, teria sido assistida em poucos minutos e estaria naquele momento, muito provavelmente, a dormir tranquilamente no colo da mãe.

Desde que escrevo sobre maternidade que assumo o meu respeito pelas diferentes escolhas dos pais. Pouco me importa se as mães preferem parir sem epidural, se optam por não amamentar ou se prolongam essa amamentação até aos cinco anos. Da mesma maneira acho irrelevante se os bebés iniciam a diversificação alimentar por sopas ou sólidos e se comem papas caseiras ou industriais. Mas o meu respeito pelas escolhas alheias acaba no exacto momento em que essas escolham podem pôr em risco a vida e a segurança das crianças. E neste contexto há dois pontos “sagrados”: a vacinação e o parto hospitalar.

Dirão algumas mulheres ao lerem este texto que nos hospitais, muitas vezes, os desejos de quem vai parir não são respeitados, que há excesso de participantes e demasiadas intervenções desnecessárias. E a verdade é que não posso discordar. Mas é por isso que luto pela humanização. No hospital. Parto hospitalar humanizado. É por aí que passa o caminho.

A surdez do Pedro, ao que tudo indica, foi resultante da negligência sofrida no parto. Um parto com uma violência brutal em que depois de três tentativas de ventosas, uns fórceps e costelas fissuradas pela manobra de Kristeller, acabámos numa cesariana emergente. Então sim, sei o que dói. Fui umas das muitas mulheres vítimas de violência obstétrica neste país. Mas sei também que a solução passa por formar os profissionais e humanizar os serviços, nunca por parir em casa.

Em 1960 existiram mais de 219 mil partos em Portugal e apenas cerca de 40.400 foram realizados em hospital. Nesse ano, 28 crianças por cada mil que nasceram acabaram por morrer no primeiro mês de vida. Em 2018, em 86.256 partos, 85.604 aconteceram em contexto hospitalar. Morreram menos de três crianças por cada mil que nasceram. Os números não mentem, não é? O acompanhamento médico da gravidez e a realização dos partos em hospital com possibilidade de assistência diferenciada foram dois dos factores decisivos para o brutal decréscimo da taxa de mortalidade neonatal no nosso país.

E para quem vem com a conversa do “mas a equipa que eu contratei para o parto em casa tinha enfermeira especialista em obstetrícia e todo o material necessário caso as coisas corressem mal”, a minha resposta é só uma: e então? De que me interessa a mim que a enfermeira tenha um saco cheio de tubos orotraqueais se a experiência dela em entubação de recém-nascidos é zero? Não nos esqueçamos de que, em Portugal, os únicos profissionais com experiência na entubação e ventilação de recém-nascidos são pediatras que trabalham em unidades de cuidados intensivos neonatais. E se o bebé fizer uma paragem cardiorrespiratória e precisar de suporte avançado de vida? A enfermeira especialista em obstetrícia está apta a fazê-lo? Tem os fármacos disponíveis? Consegue canalizar acesso ao bebé para os administrar?

Até do ponto de vista materno (ainda que as mães já possam assumir a responsabilidade pelas escolhas que fazem para si próprias) isto é absolutamente perigoso. Imaginemos um cenário de atonia uterina… A equipa que faz o parto em casa tem consigo quantas unidades concentradas de eritrócitos para transfusão? Pois… Agora imaginem que vive a cem quilómetros do hospital mais próximo. E não, estas complicações não acontecem só em gravidezes de baixo risco. Gravidezes perfeitamente “normais” e isentas de qualquer complicação podem ter igualmente complicações gravíssimas e potencialmente mortais no parto.

Dirão alguns que o parto em casa é realidade em muitos países. E se isto é verdade também é verdade que esses países, pelo menos os desenvolvidos, têm uma rede organizada nesta área que nós não temos. Mas sabem o que também é verdade? Que as menos de duas mortes por cada mil bebés nascidos em Portugal em 2019 nos deixam mais bem posicionados do que a grande maioria desses países. Alguma coisa devemos andar a fazer bem, não?

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