Confissões de uma liberal de sofá

Há compressões da liberdade aceitáveis. Há compressões polémicas que podem ser objeto de discussão. E há umas que não deviam, num Estado de direito, estar sequer em cima da mesa. Como a obrigatoriedade da app.

Sexta-feira à noite fui diretamente interpelada na televisão. Isto quando a propósito da proposta de lei que estabelece a obrigatoriedade da app Stayaway Covid, o João Miguel Tavares se lançou numa diatribe contra os “indignados do Facebook” que exigem o respeito incondicional pela inviolabilidade do seu telemóvel. Aqueles que praticam, como explica no seu artigo do PÚBLICO, “um certo libertarianismo fácil de sofá”. Sou eu. E até estava sentada no sofá.

Confesso-me o paradigma do “liberalismo de sofá”. Não ando por aí a indignar-me diariamente com os excessos do “fascismo sanitário”. Não milito contra as máscaras. O meu único ato de resistência durante o Grande Confinamento foi chamar um cabeleireiro a casa. Mesmo assim, quando se falou na obrigatoriedade da app, dei por mim a protestar freneticamente nas redes sociais. No limiar daquele momento em que passamos a escrever tudo em maiúsculas e sabemos estar iminente o internamento num hospital psiquiátrico.

É, no entanto, engraçado reparar como o João Miguel Tavares, que denuncia tão frequentemente o “whataboutism”, nos vem agora relembrar todos os abusos contra os quais não fizemos nada. Só tem legitimidade para protestar contra a app quem foi arrastado pela polícia para dentro de casa em março. Ou tem no cadastro um crime de desobediência civil. No mínimo, recusou algures que lhe medissem a temperatura.

Não. Fomos todos ordeiramente para casa quando nos mandaram e, mais coisa, menos coisa, tentámos cumprir as várias regras posteriores. Fizemo-lo porque, efetivamente, a verificação de uma pandemia envolve valores de saúde pública e proteção de vidas humanas que justificam uma compressão da nossa liberdade.

Só que.

Há compressões da liberdade aceitáveis. Há compressões polémicas que podem ser objeto de discussão. E há umas que não deviam, num Estado de direito, estar sequer em cima da mesa. Como a obrigatoriedade da app.

É muito provável que passe a ser obrigatório usar máscara nos espaços abertos quando o distanciamento físico seja impraticável. Existem muitas dúvidas sobre a base científica desta medida. Do ponto de vista pessoal, incomodam-me mais do que a app. Mas percebo a limitação e acho-a admissível. Desconfortável, polémica, difícil de fiscalizar, mas admissível.

As pessoas estão a precisar de segurança e 82% dos portugueses são favoráveis a esta proposta. Na última sondagem que vi, 47% defendem um novo confinamento. É provável que acreditem que “se toda a gente usasse máscara, isto já estava resolvido”. Mesmo que não seja verdade, se essa segurança psicológica lhes permite viver nos próximos tempos com maior confiança, devemos-lhes isso.

Um dia isto vai acabar e temos sempre de considerar que tipo de precedente estamos a introduzir no sistema. A obrigatoriedade de usar máscara está diretamente ligada às atuais circunstâncias concretas, sendo provável que venha a cair com o fim da pandemia. Esta transitoriedade quase natural torna-a um precedente mais fácil de gerir no futuro.

Já em relação à app, não sei se o João Miguel Tavares percebeu o problema dos “liberais de sofá”. Não estamos a protestar, pelo menos primariamente, contra a potencial invasão da nossa privacidade. A sua obrigatoriedade implica que atividades essenciais – trabalhar e ir à escola - possam ser limitadas se não a instalarmos. Dá às forças policiais e outros agentes da autoridade o poder de “entrar” no nosso telemóvel sem mandado de busca. O cidadão é demasiado vulnerável perante o Estado para que lhe seja dado este poder. O ponteiro de equilíbrio entre segurança e liberdade entrou no vermelho.

Isto aplica-se mesmo que fosse perfeita. Para o João Miguel Tavares, se a app funcionasse, fazia-se cá ski com ela. Muitos, como o Luís Aguiar-Conraria e o João Pires da Cruz, dedicaram-se a demonstrar a sua inutilidade ou impraticabilidade. Não faço ideia. Para o efeito, não é esse ponto.

Dar ao Estado o poder de nos obrigar, mesmo por razões de bem comum, a ter um determinado dispositivo instalado no telemóvel para desenvolver as nossas atividades mais básicas abre uma porta que pode ser difícil de fechar. Existe um risco efetivo de ficar por aí porque “já agora” é mesmo útil para outras doenças. Ou apareceu um problema de segurança, impossível de ignorar. E, mais cedo do que se pensa, vai chegar o dia em que, mesmo desnecessária, dá imenso jeito ao Estado que fique lá. E nem os liberais de sofá se vão lembrar de ir ao Facebook protestar.

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