Migrações portuguesas contemporâneas: identidade, pertença e aspirações sociais

As migrações humanas são processos complexos. Quem migra confronta-se com as tarefas de estabilizar a vida num contexto novo e avaliar constantemente a opção que tomou. Objetos e alimentos contribuem para esta tarefa ao comporem um quadro para a vida quotidiana, em que origem e destino, novo e antigo, pertença e marginalidade se intersectam. Olhamos aqui para a cultura material de um conjunto de portugueses migrantes para abordar as aspirações, ambivalências, ganhos e perdas das suas experiências migratórias.

Foto
Hugo Delgado

A temática das migrações é uma das mais visíveis e mais intensamente estudadas pelas ciências sociais. Este interesse é partilhado também fora da academia, em que o debate em torno da mobilidade e da imobilidade humanas ocupa espaço de destaque e se faz ouvir de forma generalizada. Fala-se quotidianamente sobre a origem, a composição (em termos de género, idade, classe, raça, religião, etc.) e a direção de fluxos migratórios, da sua intensidade, dos seus impactos e, inevitavelmente, da sua gestão e governo.

A minha investigação na área das migrações centra-se a relação entre as pessoas e o mundo material que as rodeia. Um mundo composto por coisas muito diversas que partilham e coproduzem espaços connosco e com as quais temos de aprender a dialogar e a usar em proveito próprio, ou, pelo menos, de acordo com o projeto que traçámos para a nossa vida. Interessam-me particularmente os objetos e os alimentos do quotidiano doméstico, os objetos e alimentos comuns, que integram rotinas e que por vezes se tornam invisíveis, tendo em conta a intimidade que temos com eles. Coisas que habitam a nossa vida privada são muito úteis para observar a identidade cultural dos migrantes que tenho conhecido, bem como as suas expectativas, desejos, vitórias e perdas. São também úteis para estabelecer ligações e explorar semelhanças entre portugueses com perfis socioeconómicos diferentes, emigrados em locais tão distintos como o Rio de Janeiro e São Paulo, Toronto e Berlim, Luanda, Maputo, Sydney e Lisboa. As três histórias que apresento em seguida ilustram este argumento.

José, Júlia e as ambiguidades da “cidade maravilhosa”

José e Júlia (nomes fictícios) são um jovem casal que se mudou de Lisboa para o Rio de Janeiro durante a última crise económica. Conhecemo-los em 2015, no decorrer do projeto Travessias do Atlântico. Escolheram o Rio como destino porque, na altura, a cidade experimentava um bom clima económico que contrastava com a situação vivida em Portugal. Ambos conheciam a cidade de viagens anteriores e esse facto, aliado aos laços culturais e históricos que unem os dois países, pesaram na sua decisão. Júlia e José, tal como a maioria dos migrantes portugueses da sua geração com qualificações superiores, não se consideram emigrantes. Falam da sua partida como uma experiência pessoal, uma oportunidade de crescimento, uma aventura. Definem-se como expatriados e insistem muitas vezes nas diferenças que existem entre eles e os outros portugueses que durante o século XX chegaram ao Brasil para escapar à pobreza.

José e Júlia moram na Zona Sul do Rio de Janeiro, a única zona da cidade onde, explicam, aceitariam viver. Embora o seu apartamento não seja em frente ao mar, tem uma localização privilegiada. A escolha tem consequências na sua vida. A renda elevada que pagam e o elevado custo de vida impede-os de aproveitar muitas das ofertas da cidade: sol, praia, vida ao ar livre nas zonas mais badaladas da cidade que ficam longe da sua casa e o convívio com novos amigos por causa do custo de vida do Rio. Têm ambos um discurso muito crítico em relação a Portugal. Explicam-me que o país os traiu, por não ter sido capaz de assegurar emprego e estabilidade para gerações como aquela a que pertencem de jovens com educação superior e da classe média. E explicam que, embora a sociedade carioca tenha inúmeros problemas e vícios, parece-lhes naquele momento capaz de os acolher melhor.

Foto
Rio de Janeiro Marco Terranova

Júlia e José têm muitas coisas na sua casa do Rio de Janeiro que falam sobre a sua origem: livros, fotografias e até uma pequena bandeira portuguesa. Mas é na cozinha que encontramos os produtos com os quais têm uma relação mais intensa e através dos quais as ambiguidades da sua trajetória se objetificam. Azeite, arroz, vários enchidos, cereais de pequeno-almoço, doces e bolinhos secos, todos reconhecivelmente portugueses, convivem com frutas e legumes tropicais, farinha de mandioca, novos temperos.

Falámos das dificuldades de adaptação a novos alimentos e modos de os confecionar, de tópicos ligados a tabus alimentares, de fatores relacionados com higiene e frescura dos alimentos, mas também de novas descobertas gastronómicas e novos hábitos alimentares. E também falámos dos alimentos que viajam de Portugal para o Brasil dentro das suas malas de viagem ou enviados pela família. José e Júlia confirmam que os seus consumos alimentares são profundamente influenciados pelas suas experiências de vida e que a alimentação é um recurso fundamental para construírem a sua narrativa de vida: para ligarmos o passado e o presente. Quando falamos de comida portuguesa, o discurso abertamente crítico em relação a Portugal suaviza-se. José e Júlia estabelecem uma distinção clara entre a cultura do país e a sua situação social e económica: “É importante mostrar aos brasileiros nossos amigos que somos pessoas que, estando abertas à sua cultura, também valorizamos o nosso património. Se quisermos ser vistos como verdadeiros cosmopolitas, temos de encontrar forma de conjugar e valorizar diferentes coisas ao mesmo tempo.”

Vera e o vento frio de Toronto

Conheci Vera (nome fictício) numa tarde de vento frio em 2008 em Toronto. Vera faz parte de uma geração e história migratória bem diferente e anterior à de José e Júlia, mas nos dois casos integram o rumo dos que com formação superior saíram do país com o sentimento de este os ter expelido por falta de condições para integrar as classes médias cultas e livres.

Vera chegou a Toronto pela primeira vez no final dos anos 60, para fugir de um país no seu dizer conservador e provinciano. As suas expectativas sobre a vida na América do Norte eram na altura muito altas, mas cedo descobriu que a vida da maioria dos emigrantes portugueses em Toronto era, na época, tudo menos glamorosa.

Foto
Toronto Nuno Ferreira Santos

Vera teve sempre a intenção de ser independente dos membros da sua família que tinham emigrado anteriormente e por isso instalou-se numa casa que partilhava com outros portugueses desconhecidos. “Era horrível”, desabafa. “Trabalhava imenso e estava constantemente rodeada de portugueses, pessoas rudes e sem educação que pensavam que eu era como eles só porque também era portuguesa. Eu, que o que mais queria era fugir de Portugal, estava rodeada de Portugal por todos os lados.” Na altura pensou em regressar, mas sempre que visitava a família no verão voltava a sentir o “sufoco e a prisão” que sentia antes de migrar e percebia que essa não poderia ser a solução: “Vim para o Canadá em busca do estilo de vida que era impossível concretizar em Portugal. (...) Queria morar numa casa geminada, num bairro bom, comprar coisas modernas e vestir o que quisesse. Em vez disso, encontrei-me rodeada de produtos portugueses de péssima qualidade e de gente que apreciava sardinhas e vinho tinto de má qualidade. Continuo sem saber se a migração foi ou não uma boa ideia.”

A sua profissão e o casamento com um português da classe média retiram-na do “bairro português” e permitiram-lhe aproximar-se da classe média canadiana com a qual se identificou desde a sua chegada. Esta proximidade não lhe permitiu, no entanto, construir redes sociais fortes fora do pequeno círculo de amigos portugueses com um perfil social semelhante ao seu e da sua geração. Conta-me que tentou durante muito tempo vestir-se, cozinhar e comportar-se “como as mulheres canadianas”, mas que de pouco lhe serviu. Decidiu por isso rever a sua estratégia e aceitar que ser portuguesa iria ficar com ela para toda a vida.

Arca de cânfora (enxoval) coim bordados à mão. Toronto 2009
Mesa de apoio em sala de estar. Toronto 2009
Fotogaleria
Arca de cânfora (enxoval) coim bordados à mão. Toronto 2009

A casa, os objetos e consumos domésticos de Vera desempenharam um papel importante no processo. Nas salas e quartos podemos observar uma quantidade apreciável de porcelanas e tapeçarias produzidas em Portugal, bem como livros, quadros e discos de autores portugueses. Na cozinha, Vera mostra-me também uma grande variedade de produtos portugueses que compra nas mercearias portuguesas locais: azeite, vinagre, pão, enchidos, atum, temperos vários, vinho tinto e biscoitos, tudo da melhor qualidade, sublinha. Prepara sobretudo receitas portuguesas e que só cozinha à canadiana quando está com pressa. Diz-me que sempre que vai a Lisboa de férias escolhe cuidadosamente os objetos portugueses que compra para a sua casa e aprende novas receitas e truques de cozinha. E afirma com orgulho: “A minha casa é um bom exemplo de uma casa de classe média portuguesa dos nossos dias.” Uma casa com a qual se identifica e que corresponde à casa onde viveria agora em Lisboa, se não tivesse emigrado para o Canadá há muitos anos.

Luísa e as ruas estreitas de Lisboa

Luísa (nome fictício) chegou a Lisboa em 1977. A sua família tinha tido até então uma experiência colonial longa, pelo que não estava familiarizada com o país, o quotidiano, os modos de ser e de pensar “das pessoas daqui”. Luísa descreveu-me essa fase da sua vida como traumática. Refere que tudo em Portugal “é estreito”, quando comparado com a realidade que conheceu em Moçambique: “As estradas, as casas e até o próprio horizonte.”

Falámos longamente sobre a sua casa do passado e os objetos que trouxe com ela para Lisboa e que teve de adaptar, cortando-os e alterando as suas funções, às dimensões do apartamento T3 em que vive desde que chegou. Mesmo assim, conta-me, “estava constantemente a esbarrar em tudo”. “Demorei muito tempo a habituar-me à estreiteza da casa.”

Luísa descreve minuciosamente os processos de adaptação que teve de levar a cabo no seu quotidiano agora contextualizado por uma nova escala.

Foto
As coisas humildes possuem o poder de, de forma tranquila mas eficaz, enquadrar e conduzir as nossas vidas – objetificando a nossa identidade, para nós próprios e para os outros Hugo Delgado

Tal como nos casos anteriores, as descrições sobre as práticas alimentares sobressaem no âmbito da cultura material doméstica. A compra de alimentos e a preparação das refeições sofreram uma enorme simplificação, não só porque o rendimento disponível não permitia empregar “pessoal doméstico para ajudar com as tarefas da casa”, mas também porque o tempo e as rotinas se aceleraram muito, não permitindo continuar “a reproduzir tudo o que fazíamos antigamente”.

Luísa explicou-me que, tanto em sua casa como na casa das suas amigas que partilham a mesma trajetória migrante, há dois aspetos que permanecem inalterados: algumas receitas “de lá”, com forte influência inglesa, e o requinte com que as refeições são preparadas e servidas. Um requinte reajustado a uma nova realidade que a ajudou a reencontrar-se longe do lugar a que até hoje chama a sua casa. E remata: “Os produtos até podem ser os mesmos, mas o resultado é totalmente diferente, porque a nossa vivência foi completamente diferente da dos portugueses daqui.”

Qual é o contributo destas três histórias para o estudo das migrações portuguesas nos séculos XX e XXI? O que nos sugerem e em que medida ilustram as suas diversidades, complexidades e contradições?

Foto
Coisas que habitam a nossa vida privada são muito úteis para observar a identidade cultural dos migrantes Rui Gaudêncio

As experiências migratórias de José, Júlia, Vera e Luísa distinguem-se entre si e, sobretudo, das muitas outras histórias que compõem a emigração portuguesa. O retrato que nos traçam é, no entanto, comum no que se refere a três dimensões estruturantes que são comuns à grande maioria dos movimentos migratórios: o desenraizamento que o movimento provoca, a urgência de estabilizar a vida quotidiana e a gestão da pertença. São estas três dimensões que procurei explorar com estas pessoas, não tanto através das suas narrativas, mas observando as suas casas, os seus objetos do quotidiano e os seus consumos alimentares. E que nos dizem as casas, as coisas e as comidas?

Em primeiro lugar, falam-nos da importância de estabelecer linhas de continuidade entre o passado e o presente. Em segundo lugar, falam-nos dos processos mais importantes de produção e reprodução cultural: aqueles que acontecem em nossas casas, quotidianamente, e que contribuem decisivamente para enquadrar a nossa vida e materializar o nosso posicionamento social. E por fim falam-nos da importância das coisas humildes, usando um conceito de Daniel Miller, para assegurar novas aprendizagens. Vivemos rodeados de objetos com os quais interagimos de modo diferenciado. Nestas interações interferem valores, significados e práticas, mas também a agencialidade dos próprios objetos, os quais, por vezes, nos obrigam a esgrimir com eles complicados processos negociais. As coisas humildes, isto é, aquelas cuja presença se torna invisível, dado estarem em permanência nos contextos em que habitamos, possuem o poder de, de forma tranquila mas eficaz, enquadrar e conduzir as nossas vidas– objetificando a nossa identidade, para nós próprios e para os outros.

Migrar implica sempre aprender e reconfigurar novos e velhos hábitos, bem como negociar e pôr em prática estratégias de pertença e posicionamento social complexas e frequentemente contraditórias. A cultura material constitui um importante recurso nestes processos.

Nota: os projetos Trânsitos. Cultura Material, migração e vida quotidiana; Travessias do Atlântico: materialidade, movimentos contemporâneos e políticas de pertença e Portugal Village. Cultura material e negociações identitárias de uma comunidade portuguesa migrante no Canadá foram financiados pela FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia


Antropóloga, ICS-ULisboa


  

Sugerir correcção