“Como vais? Nada bem”

As saudações do quotidiano têm vindo a mudar com a pandemia. No meio do ruído, ouvimos, mas será que nos escutamos?

Acabaram-se os cumprimentos com beijos e apertos de mão. E isso tem sido patente. Mas a saudação rápida, de ocasião, quando se pergunta a alguém como tem passado, também tem sofrido alterações. Antes do vírus, já sabíamos, invariavelmente, que a resposta que obteríamos seria “está tudo bem” ou “nunca estive melhor”, embora também pudéssemos enfrentar os clássicos “vou andando” ou “mais ou menos.” Respostas iguais a nada. Não produziam diálogo. Apenas interjeições.

Como em tantos outros rituais sociais, é o tipo de cumprimento que implica um acordo tácito. Não existe investimento. Alguém aparenta ter o desejo genuíno de saber como é que o outro está, enquanto este replica de forma mecânica para corresponder à expectativa criada, com ambas as partes a reconhecerem o logro. É uma falsidade autorizada.

Nos concertos acontece isso. O músico arranca para a última canção despedindo-se, agradecendo com emoção por terem vindo, sabendo antecipadamente que daí a pouco vai voltar para o encore. A assistência, por sua vez, finge que acredita que é mesmo a derradeira, para de seguida fazer barulho e exigir mais uma ou duas canções.

No actual contexto de pandemia essa mentira consentida é mais difícil de irromper. A relação com os outros foi alterada. Cruzamo-nos, mas às vezes nem nos reconhecemos, de rosto tapado. Há fechamento. Medo do outro. Mas também menos receptividade para o simulacro. Há existências precárias por todo o lado. Há gravidade no ar. As representações sociais parecem desajustadas, por mais que exista quem seja imune a tudo. As implicações são outras. Independentemente das circunstancias individuais diferenciadas, sentimos que existe um contexto colectivo partilhado. Há fragilidade e incerteza. Ninguém quer ser ignorado, tal como não deseja parecer alheado. O cumprimento, que é também interrogação, não se transformou muito. É na resposta que se sentem hesitações.

Corresponder com a resposta curta e rotineira de sempre pode parecer insensibilidade perante o quadro que enfrentamos. Mas dar uma explicação real, implica filosofar, questionarmo-nos, expormo-nos, dialogar, e poucos têm essa disponibilidade, ou assim imaginamos.

O resultado, por norma, são respostas ambíguas, onde ninguém quer parecer abstraído, mas também não se quer envolver. Fica quase sempre a sensação que algo ficou por dizer. Ou mesmo culpa. Há uma pausa, respira-se fundo, e avança-se com referências ao facto de todos os dias serem diferentes, uns bons e outros maus, concluindo-se com a ideia de que o mundo está diferente do ano passado, ou coisa do género. Nada. Abre-se uma fresta à interlocução, mas fechamo-la de imediato. É um nada apenas mais sofisticado do que há meses atrás.

E depois existem as excepções. Aconteceu-me há dias. Já não nos víamos há muito. Encontro casual. Perguntei: “Como vais?” E do outro lado recebi: “Não estou nada bem” Talvez a interrogação tenha sido feita de forma diferente, abrindo espaço para o reconhecimento, um ponto de partida para algo mais empático, mas foi a réplica que propiciou que em vez de apenas ouvir, tivesse parado para escutar.

Coisas diferentes. Ouvir é perceber sons. Escutar é prestar atenção ao que ouvimos para compreendermos. Parece óbvio, mas não é, num mundo repleto de ruído ideológico, tecnológico, mediático, colérico, financeiro. É cada vez mais difícil ouvir. E por extensão, escutar, que confere sentido, um quadro interpretativo, ao que ouvimos. Disse-me que não lhe apetecia simular. Que havia coisas que se haviam deteriorado na sua vida e, essencialmente, que estava com vontade de conversar por inteiro, argumentando que estávamos num período em que era importante a verdade, para assim a exigirmos também politicamente, economicamente, socialmente e espiritualmente.

E começamos a conversar. 

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