Governo britânico deixou primeiro arcebispo negro de Inglaterra fora da Câmara dos Lordes

Decisão prova que “confrontar as profundas desigualdades raciais” no Reino Unido não é uma prioridade e denota “desprezo” por John Sentamu.

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John Sentamu ocupava um dos lugares atribuídos aos bispos da Igreja de Inglaterra na Câmara dos Lordes Lynne Cameron/Pool/REUTERS

Quando deixou de ser arcebispo de York, em Junho, John Sentamu, combatente incansável contra as injustiças sociais, perdeu direito ao lugar que ocupava na Câmara dos Lordes, um dos 26 atribuídos aos bispos da Igreja de Inglaterra como lordes espirituais. A expectativa era que lhe fosse atribuído o título de lorde vitalício, mas isso não aconteceu. O Governo britânico justifica a decisão com a necessidade de diminuir o número de lugares na câmara alta do Parlamento, isto apesar de ter nomeado 36 novos lordes, incluindo o irmão do primeiro-ministro, Boris Johnson.

“John Sentamu é um herói e um modelo, não só para os negros britânicos mas para toda a Grã-Bretanha. O facto de não ter sido nomeado lorde vitalício é escandaloso”, diz o político e activista Simon Woolley, fundador da organização não-governamental Operation Black Vote e lorde desde 2019. Woolley, citado pelo jornal The Sunday Times, afirma esperar “que se trate de um descuido a corrigir em breve”, principalmente tendo em conta “o dilúvio de títulos para amigos e familiares, nenhum dos quais negro”.

“Há um sentimento crescente que confrontar as profundas desigualdades raciais não é uma prioridade e muitas pessoas verão nisto parte dessa narrativa”, sublinha lorde Woolley. “Espero sinceramente que o N.º 10 [de Downing Street, residência oficial do chefe de Governo] mostre a sua liderança não só enaltecendo um homem bom que serviu a nossa nação, mas também enviando um sinal.”

Com esta falha, diz ao Daily Mail o deputado trabalhista David Lammy, o Governo de Johnson “quebrou um precedente e desprezou o primeiro arcebispo negro dizendo que a Câmara dos Lordes é demasiado grande, mas encontrando espaço para Ian Botham [ex-campeão de críquete], Claire Fox [antiga dirigente do Partido Comunista Revolucionário que foi eurodeputada eleita pelo Partido do “Brexit” entre Maio de 2019 e Janeiro] e para o marido de [ex-primeira-ministra] Theresa May”.

O jornal diário escreve que a notícia levou muitos britânicos a acusaram o Governo de racismo nas suas páginas de Twitter.

Não existe um direito automático dos líderes da Igreja de Inglaterra a um lugar vitalício entre os Lordes. Mas a expectativa estava criada pelos precedentes, com a nomeação do seu antecessor em York, lorde Hope, e do último arcebispo de Cantuária, Rowan Williams.

Os novos lordes, escolhidos em Julho e nomeados em Agosto por Johnson, começaram a ocupar os seus lugares a 5 de Outubro – Sentamu, que se retirou da liderança da diocese de York (segundo posto mais importante na Igreja Anglicana depois de Cantuária) só foi informado que estava a ser considerado para o título a 26 de Junho. A 31 de Julho, em vez da carta formal a confirmar a nomeação, foi-lhe dito que teria de esperar por outra altura numa mensagem telefónica enviada por intermediários, revela o jornal The Sunday Times.

Fuga à ditadura de Idi Amin

Sentamu, nascido no Uganda em 1949, fugiu da ditadura em 1974. Juiz e opositor de Idi Amin, recusou ignorar os crimes de um familiar do ditador no seu tribunal – em resposta, foi preso e espancado; com vários ferimentos internos graves, chegou a receber a extrema-unção. Depois de se instalar no Reino Unido estudou Teologia em Cambridge e foi ordenado padre em 1979. Antes de York já tinha sido bispo de Stepney e de Birmingham.

“Sobrevivi à brutalidade de Idi Amin no Uganda, a uma intoxicação por salmonela, a uma ruptura de apêndice, a um cancro da próstata, a três operações complicadas. Através de tudo isto, soube sempre que a minha vida é aqui com Cristo e Deus”, afirmou numa missa virtual quando se retirou, a dias de completar 71 anos.

Opositor da guerra do Iraque de 2003 e da invasão anglo-americana, o bispo denunciou as violações do direito internacional por parte dos EUA na prisão de Guantánamo (que comparou à Animal FarmA Quinta dos Animais/O Triunfo dos Porcos –, a fábula de George Orwell). Em 2007, em directo na televisão, cortou o seu cabeção, o colarinho eclesiástico, em protesto contra o regime do Presidente do Zimbabwe, Robert Mugabe, só voltando a usá-lo dez anos mais tarde, quando este foi forçado a demitir-se.

"Brexit” e reconciliação social

O bispo que votou contra o “Brexit” no referendo de 2016, aprovou nos Lordes o acordo de Theresa May para a saída do Reino Unido – escreveu depois que o fez por acreditar que um segundo referendo provocaria “ainda mais desgaste na confiança das pessoas numa classe política já desacreditada, o que seria um grande perigo para o futuro governo do Reino Unido”.

Numa intervenção conjunta o ano passado com o arcebispo da Cantuária, Justin Welby, disse que “as divisões sociais estão mais enraizadas e insolúveis do que estavam há muitos anos”. Acusando o Governo de “reprimir” a reconciliação social, Sentamu disse que “a perda permanente de confiança nas instituições governamentais resulta sempre em agitação social e violência”.

Contactado pelo The Sunday Times, o Governo britânico disse que Sentamu só não recebeu uma nomeação vitalícia por ser necessário cortar no número de lordes – quando as nomeações foram anunciadas, muitos criticaram o seu número elevado, e o próprio presidente da Câmara dos Lordes, Norman Fowler, falou numa “oportunidade perdida para reduzir o número” de membros. Na nova configuração, a câmara alta, que revê os diplomas aprovados na Câmara dos Comuns e questiona a acção do Governo, terá mais de 800 parlamentares.

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