O regresso dos ultramontanos

O ultramontanismo português hodierno quer menos Estado porque quer rendas. Ou seja, quer o Estado fora do Estado, gerido por si, pagando todos os lucros de poucos. A resposta a esta grave crise que vivemos é a demonstração de que nas catástrofes só se pode acudir com um Estado eficiente.

A opinião publicada do neoultramontanismo português, ampliada por blogs sectários e por páginas conhecidas das redes sociais, tem vindo a construir uma narrativa catastrofista que assenta em três pilares: 1) o Partido Socialista assaltou o aparelho do Estado, controla a comunicação social e castrou as entidades independentes; 2) o PS sofre de um mal congénito que favorece a corrupção e dela beneficia; 3) o PS esmaga as empresas e enormiza o Estado, não deixando respirar a sociedade.

Ora, estes três argumentos são falsos, provocadores e insultuosos. Merecem, por isso, um combate que os democratas devem assumir com denodo.

Nunca o ultramontanismo miguelista aceitou a democracia liberal e a possibilidade de poder haver governos que não saiam das suas fileiras e não recebam a participação dos seus mais relevantes proclamadores. Para eles, governar é um exclusivo de quem se acha beneficiário de um saber divino para gerir, administrar e negociar. Isso, governar, só poderá ser feito pelos ilustres gestores que circulam entre empresas privadas e negócios públicos, entre decisores que inobservam o princípio do interesse da comunidade. Assim, a velha perspetiva de que há predestinados à governação assume sempre mais radicalismo e mobilização quando os cofres públicos se enchem e as elites dos interesses deles beneficia.

Uma leitura histórica sobre os tempos das remessas extraordinárias das Índias e dos Brasis diz-nos bem de como o ultramontanismo se recheava de bens supérfluos, se engajava em dívida e se afundava em miséria. Só na segunda metade do século XX, com o sucesso dos movimentos operários, o nascimento das classes médias, a construção do elevador social, se permitiu a Portugal o progresso que ninguém pode negar, a chegada ao mundo desenvolvido que não nos integrou durante mais de sete séculos.

O PS assaltou o aparelho do Estado, dizem. Mais, a dextra radical, ilustrada ou tacanha, enfurece-se com Marcelo Rebelo de Sousa porque terá permitido a normalidade democrática de uma legislatura completa apoiada nos leninistas e nos trotskistas. O que é assaltar o aparelho do Estado? Talvez seja mais relevante para os arautos da desgraça uma substituição normal do presidente do Tribunal de Contas em final de mandato do que a venda sem critério de bens de todos os portugueses, a preço de saldo e sem cuidar dos interesses estratégicos de um país soberano, como aconteceu com o terrorismo governativo protagonizado por Sérgio Monteiro entre 2011 e 2014.

O PS controla a Comunicação Social, também dizem. Compreende-se que jovens criadores de factos políticos possam proclamar alarvidades. Mas o que é controlar a Comunicação Social? Como se pode controlar a Comunicação Social num tempo em que há páginas de Facebook que têm mais leitores que os jornais todos juntos; como se pode controlar a Comunicação Social se a maior parte dos comentadores e profissionais da opinião estão longe do mesmo PS? Veja-se o domingo – Marques Mendes na SIC, Paulo Portas na TVI e em horário nobre… e o sempre presente José Gomes Ferreira.

O argumentário do favorecimento da corrupção, que também os comentadores costumeiros ampliam, é do mais anedótico que se pode verificar. O que estamos a assistir é ao combate à corrupção em direto, assumido por novas maneiras de fazer notícias, por novas maneiras de questionar decisões. Nunca houve tanto escrutínio, nunca houve tanta forma de atacar o enriquecimento ilícito.

Se nos perguntarem se há corrupção em Portugal sempre diremos que ela é inerente à vida em sociedade, corrupção em muitos sentidos, que deve ser combatida sem termo. Mas já não há aquela corrupção larvar do galo no Carnaval que ajudava a criança a passar de ano; dos ovos ao capitão que garantia o adiamento da inspeção militar; do cabrito ao juiz que resolvia a contento o caso do amigo; do inspetor tributário que ajudava o empreiteiro que lhe fazia a casa a fugir aos impostos. Hoje a corrupção é a outro nível, é quase uma corrupção que assenta num país que foge do nosso país, que negoceia longe dos políticos honestos e determina o nosso futuro sem assinatura de um qualquer governante diligente.

Se há político a quem se deve a criação das infraestruturas jurídicas e disponibilização dos meios para este combate, ele chama-se António Costa na sua qualidade de ministro da Justiça. Agora, não podemos assistir a investigações de anos, aos julgamentos em praça pública, à desqualificação da presunção da inocência e, muito menos, à comum violação do segredo do processo. Os políticos, os juízes, os banqueiros, os gestores que se revelem corruptos devem ter julgamentos exemplares, mas não podem morrer sem serem sentenciados.

O último argumento da direita é do gasto no Estado em desfavor das empresas. Só mesmo os ultras acéfalos acreditam nesta falácia. Não há um só governo nesta nossa Europa que não esteja a fazer exatamente isso. Porque sabemos bem da coerência dos neoliberais de pacotilha – nenhum Estado perante um negócio em progresso, todo o Estado perante um negócio em retrocesso.

O ultramontanismo português hodierno quer menos Estado porque quer rendas. Ou seja, quer o Estado fora do Estado, gerido por si, pagando todos os lucros de poucos. A resposta a esta grave crise que vivemos é a demonstração de que nas catástrofes só se pode acudir com um Estado eficiente.

Mas há ainda um outro argumento que até entrou nas cabeças de pessoas inteligentes – os recursos da União Europeia destinados à recuperação económica vão ser maioritariamente empregues no Estado em vez de serem empregues nas empresas, dizem. Nada de mais asnático. Os investimentos em equipamentos de saúde, em recuperação de escolas, em ordenamento florestal, em descarbonização, em regadio, em ligações ferroviárias e rodoviárias fazem-se com quem? Como? Não são as empresas portuguesas quem assume esses investimentos, garantem emprego, melhoram o desempenho da prestação pública, criam valor e formam quadros? O Estado não tem máquina operativa para enfrentar os muitos desafios que se nos colocam em seis anos, serão as empresas portuguesas a multiplicar cada euro dos investimentos públicos, a recuperar de uma grave crise que nos bateu à porta sem aviso prévio. E quem deve sustentar, pelo tempo que for preciso, o nosso setor estratégico do turismo, pela sua importância no emprego e nas exportações, não deve ser o Estado? Não lhe cumpre direta ou indiretamente? 

O neoultramontanismo, tormentoso e salivante, por não poder estar à mesa do orçamento neste tempo, assume-se num saudosismo e num recalcitramento que preocupa. Portugal precisa de uma direita democrática, cosmopolita, aberta, minimamente solidária e atenta à mensagem do Papa de Roma. Mas para os propagandistas do infortúnio também Francisco é um perigoso marxista… 

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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