No mundo em transformação a guerra é sempre fria

O que se conta a partir do que se diz.

“A minha defesa da Administração Trump seria a de que acertou ao assumir a linha dura com a China e alterar o rumo, depois do que tinha sido uma espécie de ponto de vista fatalista de Obama, de que não havia nada a fazer para deter a China”, Niall Ferguson, historiador

Biden e a segunda guerra fria

Historiador conservador escocês, admirador de John McCain, biógrafo de Henry Kissinger, Niall Ferguson costuma acertar nas suas previsões e diz, em entrevista ao El País, que Joe Biden vai ganhar as eleições nos EUA e por uma margem suficiente para não haver a grande crise constitucional de que tanto se fala. Mas, ao contrário da maioria dos seus pares, não acha que eleger o candidato democrata traga melhor sorte ao mundo, porque “quando os presidentes democratas são eleitos com uma agenda doméstica importante acabam por se meter em guerras”. Aconteceu com Woodrow Wilson, Roosevelt, Truman, Kennedy, Lyndon Johnson. O historiador acredita que a China irá forçar uma crise de Taiwan e o “momento inteligente para o fazer seria logo no princípio da presidência de Biden”, o que deixará o Presidente democrata “sem tranquilidade para fazer a sua agenda doméstica”. Para quem acha que o maior legado de Trump será o facto de ter confrontado a China, superando a debilidade anterior de Washington em relação a Pequim. “Rompeu com um consenso sobre a China que remontava a Kissinger e Nixon. Conduziu o público norte-americano a um quadro mental completamente diferente em relação à China”, diz, garantindo que até os apoiantes do Partido Democrata perceberam que “a segunda guerra fria começou”.

Soldados chineses, preparem-se

Na sua ida anual a Shenzen, a menina dos olhos do futuro da China, Xi Jinping explicou esta semana que o mundo vive num “período de turbulência e transformação” e, numa altura em que o império do meio procura “ganhar a iniciativa na revolução tecnológica”, o Presidente chinês quer também consolidar o seu poder político no mundo, daí que tenha aproveitado uma visita a uma base militar na província de Cantão para dizer aos soldados: “Empenhem-se de alma e coração na preparação para a guerra”. De acordo com a agência Xinhua, citada pela CNN, Xi pediu aos militares para se “manterem em estado de alerta máximo” e que sejam “absolutamente leais, absolutamente puros e absolutamente confiáveis”. O analista chinês Lanxin Xiang fala na possibilidade de uma “surpresa de Outubro”, aquilo que em jargão político dos EUA quer dizer um acontecimento que pode influenciar o curso de uma eleição. “A surpresa de Outubro como conflito militar não é impensável porque Trump pode querer uma presidência em guerra”, afirma Lanxin. Poderia ser em Taiwan ou um conflito limitado no Mar da China, mas a verdade é que “os militares chineses estão muito preocupados”, explica o professor no Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais.

Kissinger e T.E. Lawrence

Se até Henry Kissinger, o homem responsável pela aproximação dos Estados Unidos à República Popular da China nos anos 1970, está convencido que estamos perante uma nova guerra fria, como lembra o Financial Times em editorial, é bem provável que estejamos mesmo perante uma, embora o antigo conselheiro da Casa Branca já tenha afirmado estarmos perante uma nova guerra fria em 2015, face à crise ucraniana. O jornal britânico afirma que “não será fácil” impedir o mundo dessa “deriva em direcção a uma nova guerra fria” e que, para consegui-lo, requerem-se mudanças profundas. Desde 2018 que os EUA se preparam para um novo tipo de conflitos derivado da “concorrência entre grandes potências”, daí que a Administração Trump tenha começado a desviar as suas Forças Armadas do combate ao terrorismo para enfrentar “os Estados-nação ameaçadores”. Mas se esta é uma nova guerra fria, não se combaterá com tropas convencionais, como afirma Seth McFate na revista Zona Militar. “Quem pensa que a ‘concorrência entre grandes competências’ será uma guerra convencional está enganado (…). China e Rússia conquistam mediante estratégias de guerra irregular”, adianta o investigador do Atlantic Council que cita T. E. Lawrence: “A guerra irregular [é] muito mais intelectual que uma carga de baioneta”.

Quem é mais eficiente

Se a Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética se centrava na ideologia, em duas formas políticas de construir a sociedade, a nova guerra fria em que parecem empenhados Washington e Pequim nada tem a ver com ideologia – mesmo que o Presidente chinês tenha reiterado recentemente o papel central do Partido Comunista Chinês no desenvolvimento do país. Segundo o antigo diplomata venezuelano e académico Alfredo Toro Hardy, na sua coluna de opinião desta semana no El Universal, o confronto entre estas duas potências está baseado na capacidade de produzir resultados, sejam eles económicos, tecnológicos, comerciais ou militares. “O elemento determinante desta nova guerra fria é, portanto, a eficiência”. E, nesse domínio, os EUA perdem porque “o seu sistema político se tornou demasiado disfuncional para prevalecer numa medição de forças baseada na eficiência” e a China “sabe produzir resultados”, como se demonstra por quase 40 anos de acelerado desenvolvimento económico. A China tem um objectivo, “converter-se em número um em 2049, ano do centenário da República Popular fundada por Mao”, uma meta capaz de unificar toda uma nação sob a mesma bandeira, enquanto os EUA “se encontram divididos em duas partes irreconciliáveis de sociedade”.

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