Designers reinventam-se com filmes e desfiles ao ar livre, mas há cadeiras que ficam por sentar

Peça a peça, os desfiles do Portugal Fashion vão-se compondo. Começou nesta quinta-feira o evento no Porto, com poucos espectadores, mas muitas adaptações à nova realidade dos desfiles de moda: a virtual.

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Nelson Garrido

Apesar da declaração de estado de calamidade do país na véspera, devido à covid-19, o Portugal Fashion arrancou nesta quinta-feira, em moldes bastante diferentes e com um plano de contingência. Desfiles com apenas dezenas de espectadores, apresentações digitais das colecções e distanciamento social marcaram o primeiro dia. Embora radicalmente diferente das edições anteriores, e depois de ter visto a de Março cancelada pelo novo coronavírus, o evento conquistou novamente a audiência, por mais reduzida que fosse, e deu espaço aos criadores para reinventarem as suas formas de expressão com as colecções Primavera/Verão 2021. Do programa, destacou-se a apresentação de Katty Xiomara e a estreia de Ernest W. Baker. Também Sophia Kah, David Catalán e Estelita Mendonça passaram pela Alfândega do Porto. 

O corredor interior do edifício, que no passado se enchia de filas de convidados, está agora ocupado por manequins dispostos ao longo da passagem — vestidos pelos vários designers e protegidos por máscaras de tecidos sustentáveis. Na zona exterior da ala esquerda da Alfândega acontecem os desfiles Bloom, dos dos designers emergentes, onde os modelos fazem uso de um cenário com instalações rectangulares como se de manequins expostos se tratassem. Já as projecções audiovisuais, algumas complementadas com breves desfiles, dão-se na Sala dos Despachantes. Os restantes, no formato tradicional, acontecem no cais, junto ao rioAs fileiras de cadeiras, distanciadas, vão-se preenchendo ao longo do dia, mas o evento não chega a acomodar 200 pessoas. 

Nelson Garrido
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A “Alma” de Katty Xiomara preencheu a sala

Não é atípico da criadora Katty Xiomara desafiar os formatos convencionais dos desfiles. Este ano aliou a necessidade à expressividade criativa, e o resultado foi um filme auxiliado de uma apresentação, quase teatral, das peças apenas por duas modelos. Camada atrás de camada, as modelos iam despindo a colecção da autora, intitulada “Alma”, e distribuindo as peças pelo cenário. “Até que ponto nos escondemos até nos perdermos e não nos reconhecermos”, questiona a criadora. Foi desta ideia que partiu para a colecção. 

José Coelho / LUSA
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O filme, com o mesmo nome que a colecção, conta a história de uma rapariga “que parece estar à procura de um amor perdido, mas na verdade está à procura dela própria”, explica a realizadora, Mónica Santos. A “aproximação mais cinematográfica à colecção” foi planeada e executada em pouco tempo, como uma adaptação às imposições do vírus. Filmado no Porto, passando pelo cemitério de Agramonte e pela Galeria da Biodiversidade, a película divide-se em três capítulos que “pegam no conceito do toque, de conexão e de alma, da Katty Xiomara” e usam as peças, aliadas a uma narração poética, para contar uma história sobre ausência. 

A designer conta que “é estranho e peculiar” apresentar uma colecção nos tempos que correm. “É difícil perceber” a apreciação nestes moldes digitais, algo que não acontece presencialmente com “reacções imediatas” ao desfile. “Olhar nos olhos e ver a cara das pessoas é bem diferente”, sublinha. No entanto, por ter tido o desfile cancelado em Março, já contava fazer uma apresentação digital, “era um risco desnecessário fazer um desfile físico”, conta. Decidiu então optar pelo filme, pois considera que a gravação de um desfile “não tem alma e conteúdo” suficientes para prender os espectadores. “O filme é muito etéreo, muito flutuante, mas transmite a ideia que no fundo eu queria, de procurarmo-nos até nos encontrarmos”, explica.

A pandemia contribuiu para “tentar ver o lado positivo neste caos” e fazer uma introspecção pessoal para “perceber realmente quem somos e o que é que podemos vir a ser”, prossegue. Contudo, Katty Xiomara diz estar a sentir as repercussões da crise na marca: “Tinha a colecção em Tóquio, Hong Kong e Milão, e em Fevereiro estagnaram.” Desde então, conta, “o funcionamento tem sido extremamente lento, as lojas têm muito stock porque as pessoas têm receio de arriscar”. A colecção “não é propriamente fácil de vender digitalmente”. O próximo passo, revela, pode ser “criar uma linha bastante mais pequena e que consiga ser mais facilmente transmitida pelo ecrã, abrangendo um público um pouco diferente”.

Memórias do confinamento

Também a dupla Inês Amorim e Reid Baker foi prejudicada pela pandemia. “Tivemos algumas pequenas encomendas cancelas mas sentimos que a marca está a crescer”, ressalva a designerA colecção foi apresentada com dois vídeos: um filme caseiro em homenagem a Ernest W. Baker, o avô de Reid, e um filme da construção da linha de roupa. Nas cadeiras, rosas vermelhas e um postal com uma fotografia da colecção aguardavam os convidados. “Mais do que uma colecção inspirada na juventude ou na reflexão na história de vida de um homem, a nossa colecção é uma exaltação ao círculo da vida”, pode ler-se na descrição que acompanha. Inês e Reid conheceram-se em Milão, quando estudavam, e decidiram criar uma linha que conjugasse as suas visões. “Sempre tivemos a ideia de criar uma coisa só nossa”, conta Inês Amorim. E, agora, estreiam-se no Portugal Fashion. “A moda portuguesa é um mercado que queremos explorar e estamos muito contentes por estar aqui”, garante. 

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“A colecção foi feita em Junho, durante o confinamento, e pensámos naquilo que é mais importante para nós: a nossa família”, adianta. A inspiração chegou quando estavam a ver filmes caseiros antigos e a reviver memórias familiares. De Viana do Castelo chega-nos, então, Ernest W. Baker, uma homenagem ao avô de Reid Baker que realça a importância das raízes através da conjugação das visões distintas dos criadores. A apresentação foi apenas digital pois, “como as pessoas não conhecem”, houve a intenção de passar uma “introdução da história que queremos contar com a colecção”, explica Inês Amorim.

Entre os espectadores, o ambiente é de segurança

“Tranquilo” e “seguro" são adjectivos usados pela audiência para descrever o ambiente. Além do uso obrigatório de máscara, na chegada à Alfândega é pedido o preenchimento de um inquérito relativo à covid-19 e medida a temperatura corporal. Esta é a primeira vez que Marta Leite marca presença no Portugal Fashion, chega a convite da criadora Carolina Sobral, a jovem destaca o quão “ventilado” o espaço. 

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Também Francisca Barbosa testemunha estar “tudo muito controlado”, e realça a segurança transmitida pela localização exterior aliada ao uso da máscara. Ao lado, Andreia Maia descreve a diferença relativamente às edições anteriores: “Era muito mais confuso para entrar e as filas eram enormes.” As amigas sublinham que “a nível pessoal” a experiência tornou-se mais agradável, mas lamentam que para os criadores e para a organização não seja assim.

Outra novidade desta edição é a criação de uma transmissão contínua online dos desfiles, a Portugal Fashion TV Digital, complementada com entrevistas aos criadores. Raquel Strada é uma das apresentadoras encarregues de alimentar a plataforma durante o evento — uma tarefa que diz ser exigente mas que “está a correr bem”. “Estamos a produzir literalmente como se fosse para televisão, em directo, para mostrar o Portugal Fashion a nível digital às pessoas que estão lá em casa e não podem vir”, explica.

As entrevistas nascem como um complemento aos desfiles, dando voz aos designers para “explicarem a mensagem que estavam a tentar passar quando criaram a colecção”. Além disso, a apresentadora ressalva que essas conversas permitem uma reflexão “sobre o que é que está a acontecer com esta pandemia, e sobre pensar a moda de uma forma diferente”. E remata: “As coisas têm de acontecer de alguma forma e temos de nos reinventar para cada um continuar a fazer o seu trabalho. Porque também só assim é que a economia continua a funcionar.”

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Texto editado por Bárbara Wong

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