O que muda com a lei que transpõe a directiva europeia sobre o audiovisual? E por que razão é tão polémica?

A proposta de lei que transpõe a directiva europeia sobre serviços de comunicação social audiovisual vai ser votada no parlamento a partir desta tarde, após um adiamento requerido pelo grupo parlamentar do PS. O sector está dividido quanto aos benefícios da opção do Governo português de não taxar as grandes plataformas, vinculando-as apenas à obrigação de investir na produção nacional. E já se pede a cabeça do secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media, Nuno Artur Silva.

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Nuno Ferreira Santos

A proposta de lei que transpõe para a legislação portuguesa a directiva europeia sobre serviços de comunicação social audiovisual vai ser votada no parlamento a partir desta tarde. A votação decorre até terça-feira, devido à complexidade e ao volume de alterações propostas. Inicialmente prevista para terça-feira, a votação acabou por ser adiada por proposta do grupo parlamentar do PS, e na sequência da intensa polémica que no fim-de-semana dividiu o sector entre argumentos contra e a favor da opção do Governo de não taxar as grandes plataformas de streaming, vinculando-as apenas a uma obrigação de investimento na produção nacional. Um outro requerimento do PCP, que pedia que a votação decorresse apenas após a aprovação do Orçamento do Estado para 2021, foi chumbado.

Portugal tem de transpor para a legislação nacional uma directiva europeia de 2018 que tem como objectivo regulamentar, entre os Estados-membros, a oferta de serviços de comunicação social audiovisual.

A proposta de lei 44/XIV, que transpõe a directiva, foi aprovada pelo parlamento português, na generalidade, a 10 de Julho deste ano, sendo agora votada na especialidade, depois de um processo de consulta pública, recepção de contributos e propostas de alteração dos grupos parlamentares do PS, do PSD, do Bloco de Esquerda, do PCP e do CDS-PP.

O que é a directiva europeia 2018/1808 do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia? 

Esta directiva regulamenta, entre todos os Estados-membros, a oferta de serviços de comunicação social audiovisual, que inclui canais de televisão por subscrição, plataformas de partilha de vídeos e serviços audiovisuais a pedido, conhecidos como VOD ("video on demand"), como as plataformas Netflix, HBO e Disney+.

A directiva é justificada pela evolução “rápida e significativa” do mercado audiovisual, com a entrada de novos serviços de conteúdos pela Internet, e de dispositivos portáteis para ver esses mesmos conteúdos audiovisuais, tendo em conta ainda que os “hábitos de visualização, em particular das gerações mais jovens, mudaram significativamente”.

O que é a proposta de lei 44/XIV?

É a proposta de legislação que transpõe a directiva para a realidade portuguesa, com implicações nas leis do cinema e da televisão.

Segundo a proposta, há várias prioridades elencadas, entre as quais a promoção do cinema e audiovisual português produzido e/ou exibido naqueles serviços, a melhoria das condições de financiamento dos serviços audiovisuais e a criação de condições para uma concorrência mais equilibrada entre os vários tipos de serviço.

O Governo português terá ainda de criar mais mecanismos de protecção dos consumidores, em particular dos menores de idade, reforçar o acesso das pessoas com deficiência e necessidades especiais aos serviços de televisão e prevenir o discurso do ódio e do incitamento à violência e ao terrorismo.

Quantos Estados-membros já transpuseram a directiva para a respectiva legislação? 

À semelhança da maioria dos países europeus, Portugal já ultrapassou o prazo para transpor a directiva.

Segundo a Comissão Europeia, até ao momento, quatro Estados-membros já notificaram Bruxelas da transposição total ou parcial da directiva, estando “a maioria dos demais” a desenvolver o processo legislativo, com vista a que esteja completo ainda este ano ou no começo de 2021.

O que diz esta proposta de lei sobre o financiamento de produção de cinema e audiovisual?

A proposta de lei 44/XIV define que a cobrança da actual taxa de exibição –​ que reverte para os cofres do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) – deve estender-se a todo o tipo de serviços em que exista transmissão de publicidade.

Mantém-se a cobrança da taxa de subscrição para os serviços de televisão fornecidos, por exemplo, por serviços como a Nos, a Meo e a Vodafone. Esta taxa de subscrição, que implica a cobrança de uma taxa anual de dois euros por cada subscrição de acesso a serviços de televisão, deixa de fora os VOD.

Aos VOD – mesmo que estejam sob jurisdição de outro Estado-membro – passa a ser exigida uma obrigação de investimento, ou seja, devem destinar uma parte das suas despesas de investimento à promoção de obras europeias e em língua portuguesa.

Segundo a proposta de lei, têm “total liberdade” para escolher os projectos em que têm de investir e os montantes são definidos em função dos “proveitos”. Ficam de fora desta obrigação todos os que “tiverem baixo volume de negócios ou baixas audiências”.

A proposta define ainda uma passagem dos custos de funcionamento do ICA para o universo das despesas do Orçamento do Estado, financiadas por receitas gerais, o que significa que aquele organismo deverá ficar com mais verbas para alocar a subsídios.

Qual o entendimento da tutela da Cultura sobre a matéria?

“A partir de agora –​ essa é a grande oportunidade da directiva –​ todos os operadores estrangeiros vão estar obrigados a investir em Portugal”, disse o secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media, Nuno Artur Silva, à agência Lusa em Julho.

Na altura, Nuno Artur Silva dizia: É preferível “ter um investimento de um operador estrangeiro realmente empenhado em agarrar em conteúdo nacional e levá-lo nas suas plataformas para todo o mundo do que desinteressar-se pelo mercado nacional e deixar uma taxa que podemos gerir como quisermos. É um ganho na mesma, mas parece-me que a primeira opção é mais interessante.”

No passado domingo, Nuno Artur Silva reforçava a ideia: “Estamos a acrescentar mais valor e mais financiamento para o sistema tal como ele existe e, simultaneamente, a abrir outra possibilidade, que é [permitir] uma relação directa dos produtores com estas plataformas internacionais de vídeo a pedido”, defendeu.

Por que é que tem causado tanta polémica entre representantes do cinema e audiovisual?

Porque há entendimentos distintos sobre o tipo de envolvimento e de obrigação de investimento daqueles novos serviços na produção de cinema e audiovisual em Portugal.

Essa divisão entre produtores, realizadores, argumentistas, voltou a lume ao longo dos últimos dias com várias cartas abertas e audições de urgência no parlamento.

Os subscritores da carta aberta “Ganhar uma oportunidade histórica para o cinema e audiovisual português” defendem que se poderá assistir ao nascimento de um novo sector audiovisual português, com a aprovação da proposta de lei.

Esta carta é assinada, entre outros, pelas produtoras Ana Costa, Ana Torres, Pandora da Cunha Telles, pelos realizadores Joaquim Leitão e Sérgio Graciano, pelos argumentistas Tiago R. Santos, Nuno Markl e João Tordo, e pelas produtoras SPI, Bro, Até ao Fim do Mundo e David & Golias.

A Plataforma do Cinema, que representa uma dezena de associações, festivais e dois sindicatos, classifica como uma ilusão a ideia de que esta alteração legislativa vai fazer com que as obras portuguesas cheguem a “patamares internacionais” e lembra que as plataformas de streaming já estão presentes no mercado e a negociar com intervenientes portugueses, pedindo a demissão de Nuno Artur Silva.

Surgiu ainda o movimento “Pelo Cinema”, mobilizando cerca de 900 profissionais que acusam o Governo de ter anunciado a morte do cinema português e apelam ao adiamento da votação da proposta de lei 44/XIV e a uma maior discussão dos seus termos. Tal como está desenhado, argumentam, o modelo irá jogar “a favor dos grandes grupos económicos e permitir que seja o Estado a financiar projectos destas operadoras”.

Pedro Costa, Bruno de Almeida, Catarina Mourão, Catarina Vasconcelos, João Salaviza, Rodrigo Areias, Luís Urbano, Maria João Mayer e Paulo Branco estão entre os membros deste movimento, que na quinta-feira foi ouvido no Parlamento. Na sessão, o produtor Paulo Branco foi taxativo na sua exposição aos deputados: “A lei como está não traz um cêntimo, há uma perda substancial do investimento”, disse o produtor Paulo Branco. “Dou o exemplo da Netflix, que não tem um tostão de investimento em Portugal. Não tem um empregado, não paga um tostão de impostos. Sai o dinheiro dos subscritores, não entra nada”, afirmou.

O realizador português Pedro Costa, um dos signatários do movimento “Pelo Cinema Português”, lamentou esta quinta-feira em entrevista à agência noticiosa espanhol Efe que a plataforma de streaming Netflix esteja a operar no mercado audiovisual português em jeito de “operação de crime organizado”. Pedro Costa, que está em Espanha a propósito da estreia, esta sexta-feira, do seu filme Vitalina Varela, manifestou-se preocupado com o “assalto” que Portugal está a sofrer, “através de uma operação de crime organizado pela Netflix, desde Los Angeles”.

“De uma forma fiscal ‘gangsteriana’, com o consentimento dos partidos políticos e o beneplácito de quem vai lucrar, sem declarar impostos, a Netflix desembarcou em Portugal, tal como já o fez em Espanha”, acrescentou. Na mesma entrevista, Costa apelou à diversidade do panorama cinematográfico, saindo em defesa da “pequena” cultura face ao “horror” da uniformização de conteúdos fornecidos pelas plataformas de streaming: “Há forças obscuras que nos estão a controlar, a dominar, a dirigir os nossos passos e é possível que seja o próprio diabo. Mas este mundo podia ser outra coisa. Hoje, com a pandemia, o que faz o Governo espanhol, ou o meu Governo, ou Trump, faz-me pensar que estamos perante a verdadeira encarnação do mal”, disse.

Notícia actualizada com declaracões do realizador Pedro Costa

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