Comer ou ser comido pelo Brasil de Alexandra Lucas Coelho

Vai, Brasil é simples; é sobre lugares e pessoas. Essa massa que vai do Leblon a São Luis do Maranhão, ciranda pelos tupi, pelo candomblé e não pára mais.

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Rui Gaudencio

Anunciada uma palestra de Alexandra Lucas Coelho na Tigre de Papel torna-se obrigatório ir à aula e dizer presente até porque no dia seguinte embarco para o Rio. “Vai, Brasil está esgotado há anos, não sabia?”. Aceito, sento-me e escuto o que nunca ouvi sobre o país que vou pisar amanhã.

O sol incendeia as tendas da Feira do Livro 2020, a da Tinta da China não é excepção e ali fervilham todas as cores perante os olhos que fitam aquelas capas indesmentíveis. Será uma miragem ou aquela capa cor de planta tropical diz mesmo “Vai, Brasil”? Diz, “mas só temos os últimos exemplares e estão manchados e não têm desconto de feira”. Há livros que nos ajudam e nem estão na secção de auto-ajuda. Descobrimos uma linguagem que afinal era nossa, deixam-nos mais soltos e deslizamos no prazer da ideia.

Os melhores negócios são os proibidos. Os que não negam o ócio. Vai, Brasil aqui de longe.

Disparado por essas horas de saudade na Livraria da Travessa, acordo com várias voltas ao mundo (tanta riqueza, referências e encontros) de ALC nas minhas mãos. Permite que te fale. Permite que te roube. O ritmo da tua prosa é tão forte que entra pelo pensamento.

Abro essa luz verde que reflecte as trevas daquele tempo da troika passista onde não havia ministério, nem dinheiro, nem cultura. À distância, escreves a tua aventura transatlântica para servir o esquecimento. 2010-2013. Viagem ao exterior para entender o interior, sairmos para nos definirmos, não será assim? 

Vai, Brasil é simples; é sobre lugares e pessoas. Essa massa que vai do Leblon a São Luís do Maranhão, ciranda pelos tupi, pelo candomblé e não pára mais. É dela, ALC, este país continental alegre mas sofrido e imersivo até transpirarmos ritmo e melancolia pelos olhos seja na Roda do Ouvidor ou no Samba do Trabalhador. A cada dia retomo a viagem e lá vou eu pelo Brasil dela, agora nosso. De quando em vez, paro. Vou ao YouTube e vejo a onça da Amazónia ou o Mercado “Ver o Peso”, e volto à sua escrita. É um livro de factor, porque conta histórias com mais cor que um jornalista e com mais factos que um escritor.

Numa boa viagem estão lá metidas todas as outras viagens. Por isso, há nestas páginas camadas de Japão, Egipto ou Médio Oriente. Permito-me misturar o mercado de Belém com o caminho para um paladar de Havana e recordo os pés boiando nos bazares de Istambul. Viajar, para além de um acto de loucura deve servir para baralhar tudo e voltar a misturar. Como Oswald de Andrade defendia, “trazermos o exterior para dentro de nós”. O outro deixa então de ser estranho e passamos a ser nós também. Somos nós que pisamos o Complexo do Alemão, somos nós os tupimari, somos nós que aprendemos palavras novas como tucunaré, pirarucu ou candiru.

Mergulhamos no Nordeste fundo, alagados de livros dentro do livro e navegamos pela natureza indígena. A culpa morre, desde logo, casada com o conforto destas páginas que nos provam que “onde há prazer o conhecimento está mais próximo”. Colocamo-nos no lugar adequado para o português de Portugal nestes tempos pós-coloniais: o da escuta. Alter do chão, Santarém, Barcelos ou Almeirim. Navego por estes locais e encontro piranhas a passearem numa língua de paraíso, é o Caribe do Nordeste. A ambiguidade trazida por cada página e a cada palavra um eco desconhecido.

Ganhamos uma vista para a garota babilónica das mil portas, a capital paulista, através do crack, da sacanagem e da suruba, isto tudo à boleia de Pornopeias que já nem dividem a mente da genitália. De volta ao Rio, em Copacabana, de mão dada a ALC entramos no Palace, mermão. O luxo permitido para brincar de rico por um dia fica tão longe da Zona Norte, preenchida por cantos escondidos, dançando ao som da bala no baile funk onde pululam cachimbos que esfumam visitas turísticas a determinados quarteirões.

Está aqui tudo explicado, até como nasceu Maria Bethânia, de onde surgem as palavras de Chico ou o tom de Jobim. Este cerimonial literário localizado no coração da obra de ALC, e aproveitando para evocar os rituais antropofágicos indígenas, devorou-me e fui também comido pela carne tão viva das suas palavras que possibilitam a miscigenação e o multiculturalismo sonhado por tantos.

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