O fardo de falar em público

Nunca se venderam tantos livros sobre pensamento positivo, inteligência emocional, comunicação interpessoal e quejandos, que parecem oferecer-nos a resolução dos nossos problemas, a troco de euros.

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"Falar em público é, de facto, algo que se aprende, ainda que não se o domine num par de horas" Nuno Ferreira Santos

As últimas décadas fizeram emergir competências que sentimos como imperativas e que nos melhoram a vida, caso as dominemos. Nunca se venderam tantos livros sobre pensamento positivo, inteligência emocional, comunicação interpessoal e quejandos, que parecem oferecer-nos a resolução dos nossos problemas, a troco de euros.

A tarefa afigura-se fácil: perante tutoriais que nos conduzem, como que na montagem de um móvel do Ikea, só teremos de seguir os passos recomendados e tudo atingiremos: felicidade, bem-estar material, equilíbrio emocional, uma excelsa forma física, a reversão dos problemas ambientais, a cura de constipações com mezinhas caseiras e o saber-viver. O problema reside no facto de que, exactamente como aquando da montagem de um móvel, nem todos temos o mesmo jeito: para uns é intuitivo; outros, depois de uns dedos doridos e de parafusos ausentes, atingem um resultado aceitável; para uma (arriscaríamos) maioria, a experiência revela-se frustrante, na medida em que “se toda a gente consegue por que não consigo eu”?

É simples: porque não aprendemos todos do mesmo modo e porque funcionamos de forma díspar, a partir de uma miríade de características e vivências singulares. Pretender que duas ou mais pessoas tenham os mesmos resultados, com base numa mesma metodologia, apresentada como infalível, gerará más experiências, que tornam os objectivos ainda mais longínquos, para quem os pretende alcançar.

Uma das competências mais perseguidas, hoje, é a arte de bem falar. Percebe-se, como se percebera já na Grécia Antiga que, em democracia, dominar a retórica é sinónimo de poder — seja ele institucional ou pessoal, na medida em que fazermo-nos entender e cativarmos o outro, por meio do nosso discurso, ao dar a conhecer as nossas crenças ou propostas, é essencial para que ele seja convencido por nós.

Daí a imensa oferta de acções que prometem ensinar a falar perante outrém: ela justifica-se porque queremos deter esse poder, ultrapassando os constrangimentos que nos levam a temer a tarefa. Com elas, temos a esperança de nos tornarmos, miraculosamente, num dos que poderiam ganhar a vida a discursar. E é com real surpresa (e desalento) que verificamos que não, acabando por nos remeter para aquele vasto grupo dos que continuarão a estremecer sempre que pensam em falar para mais do que uma pessoa (ou só uma pessoa, dependendo das circunstâncias) — afinal, até nem estamos sozinhos.

Falar em público é, de facto, algo que se aprende, ainda que não se o domine num par de horas: há toda uma série de factores que entram em linha de conta e que se prendem com características individuais de cada sujeito (que vão do carisma ao conhecimento do conteúdo a comunicar), mas também com a sua apetência para a tarefa e com aspectos que não são domináveis pelo orador.

Se tivermos em conta estes cerceamentos, seremos aprendizes mais capazes e menos iludidos: não há receitas mágicas, porque o mesmo chapéu não serve todas as cabeças – o que não faz dele um chapéu de menor qualidade.

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