Da arte do equilibrismo: um lugar de fala para o programador cultural

Muitos dos que hoje exercem a função de programador adquiriram a sua experiência e know how mais através de um multifacetado percurso de trabalho no terreno do que propriamente como resultado de uma formação académica na área.

Sabemos bem que raros são os momentos em que os processos de construção da programação cultural no domínio das artes performativas (e seus múltiplos aspectos correlatos) são abordados em profundidade e amplitude na esfera pública em Portugal. Em 2020 a conferência anual da associação Acesso Cultura decidiu, em boa hora, contrariar essa tendência e empreender uma reflexão crítica e actual sobre esta problemática, levantando questões pertinentes do ponto de vista cultural, artístico, ético, político, social e simbólico, e fomentando um debate fértil entre profissionais de diferentes latitudes, perfis e experiências.

Como já frisei amplamente noutro texto, o programador cultural ainda é percepcionado muitas vezes como uma figura que se situa algures num limbo entre mistério e claridade, com um perfil, alcance e futuro pouco claros e indefinidos, o que traz consigo preconceitos e generalizações redutoras, fruto de desconhecimento e alguma ingenuidade. Também existe uma consciência — e até por comparação com o que acontece no campo das artes visuais (mais amadurecido e “musculado” a este nível) — de que a figura do programador só entra, de forma declarada, nas artes do palco nas décadas de 80 e 90 do século passado, continuando a constatar-se uma significativa carência de produção de pensamento e teorização sobre uma profissão complexa e sensível e, de modo mais amplo, acerca da sua articulação com modelos, dinâmicas e práticas de gestão de instituições e equipamentos culturais.

Por outro lado, muitos dos que hoje exercem a função de programador adquiriram a sua experiência e know how mais através de um multifacetado percurso de trabalho no terreno do que propriamente como resultado de uma formação académica enfocada nessa área, isto ainda que uma percentagem muito considerável apresente (mas não necessariamente) uma formação superior no campo das ciências humanas e sociais. Relembre-se que no nosso país existe apenas, e é relativamente recente, uma licenciatura em Programação (e Produção) Cultural na Escola Superior de Artes e Design [ESAD] das Caldas da Rainha, não obstante alguma proliferação de pós-graduações e mestrados nas áreas da Programação, Produção, Gestão Cultural, Indústrias/Cidades Criativas, ministrados por diversas entidades públicas e privadas.

Há, assim, um caminho desafiante ainda a percorrer no que concerne à profissionalização e maior qualificação deste ofício (associado a uma acentuada dimensão de pragmatismo, que é real), não só para benefício do próprio universo cultural como também para uma maior valorização simbólica e dignificação da figura do programador junto das esferas política e social — para que, em suma, e parafraseando Pamela López e Andrés Kalawski, esta profissão possa emergir do silêncio rumo à liberdade. Isso fará, por exemplo, com que as próprias instituições criem mais condições e estímulos laborais — algo ainda pouco habitual nas realidades municipais, mormente as situadas fora dos grandes centros urbanos — para que os directores artísticos/programadores possam efectivamente circular e manter uma proximidade e um elo de ligação regular e consistente, que são cruciais para a sua função, com o meio cultural e criativo, nomeadamente no que toca a idas a festivais e a premières para prospecção de espectáculos, ao trabalho colaborativo em rede com outras geografias, à frequência de acções de formação, à participação em colóquios e talks, à troca de experiências entre pares, etc.

Revisito a letra O Bêbado e a Equilibrista, interpretada por Elis Regina em 1979, e nesta “embriaguez” turbilhonante, veloz e difusa em que vivemos associo o programador a um aprendiz de “esperança equilibrista”, que sabe e acredita que a arte “tem de continuar”. Sim, porque no fundo estamos a falar de múltiplos jogos de acrobacia no fio tenso e frágil dos dias, num exercício permanente de equilíbrios — sem manual de instruções — entre vários pólos que não são (sempre) necessariamente disjuntivos e que se podem revelar (potencialmente) convergentes: um enfoque no projecto/conceito artístico como epicentro e o tempo dedicado à componente da gestão e à burocracia administrativa; a intenção autoral, centrada numa visão pessoal e subjectiva, e uma construção partilhada, colaborativa e dialogante da programação, num work in progress com outros agentes do ecossistema cultural; uma relativa autonomia e concentração de capacidade decisória/poder e a harmonização desse posicionamento com a estrutura interna da organização em que se inscreve; o risco disruptivo e o conforto do previsível; a atenção às minorias e as tentações do mainstream; a essencialidade de criar experiências transformadoras para os públicos e as leituras puramente quantitativas e estatísticas (em termos de adesão). Em resumo: a lógica binária do preto/branco parece ocupar assim um espaço diminuto no léxico dos programadores, sendo muitas das suas opções e soluções enquadradas em planos intermédios, em sínteses feitas de balanços exigentes e nem sempre evidentes e compreendidos.

Os critérios que consubstanciam a arquitectura programática estão sujeitos a variáveis e condicionantes diversas, e resultam de níveis múltiplos e complexos de interdependência e intersecção entre três planos: o perfil e esfera do programador, o seu contexto institucional/organizacional e a paisagem cultural e artística envolvente. E aqui é fundamental reafirmar a ideia de que programar não constitui um acto isolado nem imune ao seu ambiente, e que não está sujeito a guidelines rígidas e estanques. Estamos perante um processo que se nutre de temporalidade, dialogismo e transversalidade, sobressaindo daí a ideia de que efectivamente não existe (apenas) uma forma ideal de desenhar a programação cultural e de apresentá-la, mas sim uma plêiade de possibilidades, activadas ou não em função de factores que ora são de ordem assumidamente estética ora se situam num plano mais pragmático, ora denotam uma natureza híbrida.

Sublinhar ainda que é irrealista conceber a programação como um exercício de poder absoluto, de despotismo cultural, de criação de uma hegemonia no ecossistema, como algumas vozes apontam. Se é um facto indesmentível que o programador precisa de usufruir de uma determinado nível de independência e de poder para implementar, de forma eficaz, consistente e com impacto, a sua estratégia e grelha de projectos e acções (que também contêm, obviamente, uma dimensão política), por outro lado, há duas questões que não podem ser igualmente descuradas: o programador precisa de estar constantemente atento e vigilante face a essa margem de manobra de que disponha, pois a mesma pode ser ampliada ou, mais habitualmente, restringida por vezes com uma considerável rapidez e volatilidade em função de protagonistas, vontades e timings específicos; além disso, nem sempre os diferentes patamares/esferas de poder estão do lado do programador. Esse poder deverá ser usado com sensatez, parcimónia, sentido de realidade e de forma partilhada, em interacção com os demais agentes da cadeia produtiva das artes performativas — com autoria e autoridade mas sem autoritarismos, como certeiramente recordava há dias Emília Ferreira, directora do Museu do Chiado. Em não poucos casos, é preciso sublinhar que o programador acaba por apresentar o que consegue e não necessariamente aquilo que idealizara, em função também ainda de expectativas exógenas que, na óptica institucional, “precisam” de ser correspondidas, de condicionalismos orçamentais, de aspectos conjunturais, de dinâmicas e fluxos de público. 

Parece-me evidente que o acto de programar está crescentemente ligado a uma concepção de processo participado, deslocando-se o enfoque de um eventual modelo estático de centralização de poder para um paradigma mais aglutinador que abarca os conceitos de comunidade, envolvimento e construção partilhada. Isto também tem a ver com a ideia, que se me afigura vital, de que, como aponta Nina Simon (directora do Santa Cruz Museum of Art and History, nos EUA), um projecto cultural possa crescer, questionar-se, reformular-se para lá da intenção inicial da instituição/programador que a apresentou e que esse trajecto pluralizado vá convocando novos sentidos, derivações, sínteses.

Cruzando missão, criatividade e recursos, o programador almeja assim atingir uma coerência, estabilidade e identidade ao nível do seu trabalho, aprofundando e criando uma voz própria e singular para a entidade cultural ou projecto artístico que representa, a qual funcione, a meu ver, como um instrumento de permanente resistência à banalidade e ao óbvio. O fim primacial de um projecto de programação artística passará por convidar o outro para o não visível, para uma maior familiarização e conforto do público com a nuance, o pormenor, a complexidade (com o que está entre e com o que está implícito), extraindo assim todo o potencial da tríade fruição-reflexão-transformação.

Nesta constelação, a relação do programador com o meio artístico é outra dimensão igualmente nuclear, sendo antiga a tradição de tensão entre estes dois universos — ainda mais agudizada, de certa forma, em períodos críticos como o actual, em que o sector criativo debate-se com inúmeras dificuldades, muitas delas resultantes de fragilidades estruturais de longa data associadas ao milieu cultural. No que concerne ao labor programático, a questão da confiança no trabalho de determinado artista revela-se fundamental. Sabemos que, em geral, os programadores tendem a seleccionar criadores com os quais já tenham tido experiências positivas e superlativas, procurando, legitimamente, acompanhar os seus percursos e aprofundar, numa lógica de continuidade, a relação com os mesmos. Quando se trata de fazer encomendas artísticas, essas ligações são também amiúde activadas. Mas, mais uma vez, aqui não há uma regra ou uma visão única e rígida, havendo outras opções a considerar numa lógica de inovação e diversificação dos programas. Frisar ainda que a escolha de figuras emergentes ou pós-emergentes pode revelar-se, muitas vezes, uma aposta ganha ou um acto “falhado” em função, na verdade, da maior ou menor proximidade, conhecimento efectivo e cumplicidade do programador com o perfil, percurso e trabalho de determinado artista, sendo este aspecto essencial no sentido de “minimizar” os efeitos de uma natural incerteza. 

E aqui emerge um aparente paradoxo: se é um facto que o risco no processo criativo é um ingrediente que lhe confere amplitude, expansão experimental, magnetismo, curiosidade e empatia — e que também está intimamente ligado à questão da liberdade artística, premissa que importa sempre preservar —, também parece evidente que o programador tenderá a acautelar essa dimensão de maior imprevisibilidade através de um diálogo aberto e cúmplice com o criador, procurando com isso não desvirtuar nem ter um papel demasiado intrusivo (ou eventualmente até castrador/censório) na construção do objecto artístico. Ainda assim, isto não invalida que esta convivência não se revele amiúde complexa, exigente e constitua, de facto, um território muito delicado da morfologia cultural contemporânea quando pensamos na relação entre programadores e meio artístico.

Mas como não abordar a temporalidade? Programar, na minha óptica, pressupõe uma relação dinâmica e criativa com o tempo numa tripla acepção. Em primeiro lugar, empreender uma programação que reflicta um olhar atento e questionador sobre o tempo presente, alinhado com a urgência do agora e que funcione como lupa do mundo, auscultando o seu pulsar e devir. Por outro lado, propor uma perspectiva que não olvide a dimensão pretérita, que não renegue um continuum temporal e uma tradição/memória, e que privilegie uma visão de conjunto sem a qual se instauraria um grau zero de consciência diacrónica do programador no que se refere às linhas evolutivas das dinâmicas culturais e artísticas (macro e micro) e às suas respectivas balizas e referências. E ainda ousar um olhar projectivo sobre o amanhã, feito de rasgo e utopia, que ponha em diálogo possibilidades de futuro, que se afirme e consolide como uma frente avançada de reflexão e pensamento crítico, como um instrumento criativo de implicação colectiva, de cidadania pela arte.

Mas a questão do tempo adquire ainda outros contornos neste ofício, nomeadamente no que concerne à gestão das múltiplas tarefas que o programador ou director artístico tem a seu cargo, dependendo aqui também do facto de haver (algo pouco habitual) ou não uma outra figura no organograma da instituição/equipamento que assegura a direcção executiva, ou ainda outra(s) que assegura(m) o papel de assistência à programação. Na maioria dos casos em Portugal, designadamente nas estruturas municipais, os programadores acabam, em maior ou menor grau, por acumular quatro conjuntos de tarefas: a área criativa, centrada na elaboração de projectos, programas/repertórios e textos (conteúdos) para as temporadas artísticas; a área administrativa, que inclui a gestão do orçamento (despesas e receitas), a negociação das condições contratuais com os artistas e demais burocracia associada, e a definição da política de preços e de descontos, entre outros aspectos; a área do marketing cultural e relações externas, aqui mais concretamente na angariação de patrocinadores, na supervisão dos canais de comunicação e da ligação institucional com os media, ou na monitorização da adesão e nos estudos de público; e a área formativa, que abarca todo um conjunto de acções relacionadas com o acompanhamento externo e estudo/análise do meio cultural e criativo pelo programador. Como é óbvio, este manancial de exigências varia mais ou menos de acordo não só com o perfil de quem programa como, acima de tudo, com a tipologia, dimensão, missão e grau de estruturação da organização na qual se insere.

Não obstante, é inegável, por exemplo, que a quantidade assinalável de horas que muitos profissionais responsáveis pela programação ocupam, cumulativamente, com tarefas de gestão e administração acaba por lhes retirar, não poucas vezes, espaço, fôlego e disponibilidade para uma relação que se deseja de maior proximidade e interacção com a galáxia artística e seus respectivos processos criativos, bem como para uma auto-reflexão mais aprofundada sobre a sua própria profissão, o que se reflecte também no(s) modo(s) heterogéneo(s) como depois percepcionam o seu próprio trabalho. Sem negar a relevância de o programador condensar em si uma acentuada polivalência e versatilidade que muitas vezes (lhe) são vantajosas, a aposta na integração de mais elementos especializados em dadas áreas específicas nas equipas adstritas às estruturas culturais permitiria também, nalguns casos, um investimento ainda mais imersivo e cúmplice do programador na ebulição artística. Poderia também aludir à sua crónica falta de tempo para analisar detalhadamente todas as propostas que lhe são endereçadas e dar-lhes o devido feedback em tempo útil, ou ainda aos próprios limites de uma profissão claramente “invasiva”, enfatizando aqui o facto de muito do tempo pessoal do programador ser ocupado precisamente a fruir e analisar, em modo de trabalho preparatório, um vasto e diverso conjunto de espectáculos promovidos por outros colegas/equipamentos.     

Ainda uma nota breve sobre alguns pontos que, na actualidade, se afiguram muito relevantes quando pensamos no presente e futuro da programação e em todo o sistema na qual esta se alicerça. Um deles não constitui novidade e prende-se com a perigosamente crescente interferência das lógicas de mercado e das análises de impacto centradas exclusivamente no critério quantitativo (lotações esgotadas e lucros), isto mormente no funcionamento de equipamentos culturais estatais que, por inerência, prestam um serviço público e contribuem para uma maior democratização do acesso às artes. Daí que haja uma preocupação cada vez maior dos programadores com a definição de parâmetros qualitativos que permitam aferir, de modo mais aprofundado, sustentado e menos mecânico, a repercussão do seu trabalho junto das comunidades e dos territórios.

Mas para concretizar esse desiderato de reformular o chip da avaliação da programação cultural em Portugal, é essencial, entre outras medidas (em que ressalta desde logo a confiança, cobertura e defesa do projecto artístico, emanado do programador, pela máquina institucional), um enfoque claramente mais substantivo e assertivo na realização de estudos de público e na integração nas equipas de profissionais dedicados a esta vertente absolutamente estratégica que, no entanto, constitui uma das mais gritantes carências observável no panorama das artes performativas. Essa investigação, assente em práticas regulares de monitorização e análise comparativa de dados em vários planos e perspectivas, constitui, aliás, uma ferramenta essencial para que o programador possa conceber um plano mais fundamentado, direccionado, atractivo e eficaz. A este tópico junta-se o imperativo de um maior investimento nos domínios da mediação (ainda por vezes confundida com comunicação) e do marketing cultural (aqui com ênfase para a mediatização pós-actividades, estratégia ainda muito esquecida), aspectos ainda pouco afinados em várias realidades, mesmo nalgumas munidas de conteúdos programáticos de inegável qualidade e idiossincrasia estética.

Voltando à temática do tempo, não deixa de ser curioso (paradoxal?) que, durante este período pandémico, tenhamos estado vários meses a enfatizar veementemente a necessidade vital de parar, de fazer uma reflexão-balanço e de repensar arquétipos e práticas, de privilegiar o less is more, para agora, de alguma forma, regressarmos novamente a um rodopiante frenesim de programação, isto não obstante as inegáveis valências positivas desta necessária re-ignição fruto de uma intensa pressão socioeconómica, artística e política (que é legítima) para que a Cultura não perca a sua vibração.

Porém, perante este movimento unilinear e ininterrupto que persiste em nos empurrar constante e sofregamente para a frente, sem hiatos, é inevitável lançar várias interrogações. Que lugar(es) queremos e consegui(re)mos atribuir ao tempo, à respiração, ao ritmo num ecossistema cultural em latente redline onde a maioria almeja produzir cada vez mais resultados? Teremos “todos” de programar “tudo”, num cenário em que, analisando em malha fina, muitas grelhas artísticas acabam por ser mais homogéneas e menos diferenciad(or)as do que se julgaria à partida? Perante essa prolixidade generalista, não será cada vez mais pertinente conferir um espaço acrescido e destacado à especialização programática de equipamentos/contextos e a estratégias assentes em lógicas de complementaridade (e não de sobreposição sem valor acrescentado) das diversas ofertas culturais?

Que a regulamentação da Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses venha também contribuir para uma maior apologia e valorização do papel do programador, mormente (mas não só) junto do poder. E, numa visão mais lata, que este novo tempo seja sinónimo de uma atenção redobrada e demorada, por parte do Estado, à imensa vitalidade e diversidade culturais e artísticas (ao nível dos lugares e modos de criação numa escala local) que várias periferias têm vindo a demonstrar com as suas dinâmicas programáticas instaurando-se como novas centralidades a um nível micro/regional.

E que o programador, na sua vocação demiúrgica, continue a fazer girar a roda da criatividade, afirmando/reinventando uma identidade e uma mundividência, relativizando com humildade o seu lugar no mundo para não perder a capacidade de olhar à volta e de “parar para ouvir gritar baixinho”, e persistindo, de forma resiliente, num espírito de mediação que coloca em relação dialógica objectos artísticos, criadores, intérpretes, organizações e públicos. No ondular incerto da corda, que não deixe de ousar novos e renovados equilíbrios, “instáveis” e plenos de inquietação.

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