Um luto doente: será esta a próxima sequela viral da pandemia?

Temo que esta pandemia nos deixe um universo de lutos doentios, tão doentios como o vírus. O luto não é doença mas poderá vir a sê-lo. Porque sem despedidas consumadas, as pessoas simplesmente se apagam e as despedidas esticam-se. Se não existe uma despedida, como comprovar que a dor existe?

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paulo pimenta

Como psiquiatra, prestei assistência a doentes infectados por esse vírus terrível e durante meses estive impossibilitada de ver a minha avó. A minha profissão obrigou-me a um distanciamento das pessoas que amo, inclusivamente desta avó. Um gesto em si mesmo paradoxal, mas a maior prova de amor que acredito conseguir dar. Foi fácil para ela compreender a razão imperativa do nosso afastamento, mas difícil para ambas aceitarmos as implicações emocionais dessa separação. Hoje ela está bem, ou melhor, ainda está bem. Mas a avó da minha amiga e colega de trabalho não está e ela hoje disse-me que sofria. 

A brevidade deste texto devora pela metade a preocupação por esta avó e a sua história, mas procura alimentar um olhar reflexivo sobre as famílias que aguardam por uma notícia e que continuarão a fazê-lo semanas a fio. Ninguém repara nelas. Elas tranquilizam-se como? A minha opinião enquanto psiquiatra e neta é que simplesmente não se tranquilizam.

Na consulta vejo famílias cansadas de espera e de procura. As famílias querem estar próximas e desejam saber, mas por vezes isso é impossível. Encontram todos os dias o mesmo — os seus familiares longe e a dúvida. Cada instante é uma incógnita. As informações médicas são escassas ou inexistentes. Os profissionais de saúde, desencantados ou exaustos, oferecem explicações à velocidade máxima e a solidariedade superficial que se fica pelo telefone não sacia, não consola ninguém. 

Psicopatologicamente, a dúvida consegue ser mais angustiante do que a certeza, mesmo uma certeza má. Com uma certeza ainda que má, pode ser idealizado um plano, uma acção e com o tempo, conseguir uma aceitação cada vez maior. Por outro lado, com a dúvida e a ambiguidade, imaginam-se todos os cenários terríveis. Sentirá frio? E a palidez da pele? Assustar-se-á de noite com a sua própria agitação? E na agitação, que modos violentos usará? Sentirá a nossa falta?

Temo que esta pandemia nos deixe um universo de lutos doentios, tão doentios como o vírus. O luto não é doença mas poderá vir a sê-lo. Porque sem despedidas consumadas, as pessoas simplesmente se apagam e as despedidas esticam-se. Se não existe uma despedida, como comprovar que a dor existe? Talvez a inexistência de uma despedida transforme essa dor numa dor ainda maior.

As visitas hospitalares e as cerimónias fúnebres foram proibidas pela segurança de todos, o que é compreensível de uma perspectiva lógica, contudo extinguiram-se rituais importantes, porções de tempo habitáveis para uma dor indizível que nada tem de racional. Porque se não se olha, se não se agarra, então não há uma despedida de que se possa orgulhar. Não existe uma despedida que consiga reconciliar a dor de uma perda e desse modo dar-lhe espaço e forma dentro de nós. Se a dor não vai parar ao lugar certo, como nos podem exigir que regressemos ao mesmo de nós, àquilo que sempre fomos, antes mesmo de essa dor existir? E como investir novamente na realidade e experienciar o prazer sem sentir repugnância ou culpa?

Durante estas despedidas vazias, a dor não tem onde se agarrar e alastra-se de forma silenciosa. Por fim, perde-se o controlo e depois somos nós que não nos conseguimos libertar dessa dor ou atribuir-lhe um significado. Talvez por isso necessitemos tanto de olhar com mais atenção para as famílias. Quando a dor é demasiado grande confunde-se com a loucura e torna-se doença, tão viral como o próprio vírus. Será esta a próxima sequela viral da pandemia, uma despedida vazia que se estica, um luto doente?

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