Pessoa que ladra não morde

Mais tarde, conheci outras pessoas como a avó. Ralhavam, barafustavam, mas nada. Nunca mordiam.

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“A avó ladra mas não morde.” Dizia-me o meu primo, depois de enfrentar a avó furiosa perante o chão da cozinha barrado com manteiga Planta. Servindo-nos de um salazar, cobríamos todo o pavimento até ficar brilhante e amarelado. Era uma embalagem de manteiga por sessão de dancetaria. A ideia era facilitar os passos de breakdance, mas acabávamos invariavelmente estatelados no chão com a roupa completamente engordurada, cheios de nódoas negras e com os insultos da avó, estacada à ombreira da cozinha com um ar de quem ia ter um badagaio.

A brincadeira era bastante má e perigosa, diga-se de passagem, mas na altura parecia-nos algo genial: renovar o chão, de forma a facilitar os pezinhos à dança. A avó gritava connosco até se ouvir num raio de dois quilómetros, obrigava-nos a limpar tudo, e essa parte não era nada divertida, mas, de resto, nada. A avó ladrava e não mordia.

Tínhamos amigos na escola que levavam pancada das avós, dos avôs, dos pais e de outros parentes. Percebemos desde cedo que estes adultos que mordiam, normalmente não sinalizavam. Percebemos que o ladrar dos humanos, tal como o dos outros animais, se tratava de uma espécie de advertência de perigo. Ou seja, um aviso do que seria o passo seguinte: a dentada.

Mais tarde, conheci outras pessoas como a avó. Ralhavam, barafustavam, mas nada. Nunca mordiam. O meu chefe de redacção, que me partia a cabeça com críticas duras, mas nunca me demitiu; uma colega noutra empresa, que parecia estar sempre zangada, mas trazia bolinhos e prendas personalizadas para todos quando se aproximava o Natal. É claro que não me refiro àqueles que ladram e não mordem porque são fracos ou cobardes. Porque também os há. Falo dos outros, dos que não querem genuinamente conflito nem confronto físico. Sinto carinho por estas pessoas. No fundo, são anti-violência. Tentam assustar com latidos para não terem de dar o passo seguinte, não querem fazer mal a ninguém.

Eu própria, depois de ter sido mãe, também me juntei ao grupo. Ladro e não mordo. Talvez tenha herdado da avó uma certa propensão para me enfurecer sem agredir alguém. Ralhar sem aviar tabefes. É que nós, os que ladram e não mordem, muitas vezes só nos prejudicamos — ladramos até à afonia. 

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