Senhora ministra da Justiça: não nos deite areia para os olhos

Este caso é grave e este caso é triste. Está a dar uma péssima imagem do Governo português e do país, junto de outros governos, da Comissão e do Parlamento Europeu.

1. Volto a um tema que já trouxe aqui: a ministra da Justiça falhou gravemente e andou mal na história nebulosa do processo de designação do magistrado português que assumiu a função de Procurador Europeu. História, até há bem pouco tempo, nunca explicada. Entretanto, como a ministra se deve ter apercebido de que a actuação do Governo não está a passar incólume nas instâncias europeias e de que já está a criar má fama em Bruxelas, resolveu desdobrar-se em comunicados na frente europeia e nacional. O comunicado feito a este propósito, bem como as operações de comunicação que o acompanharam junto dos mass media, é um exemplo lídimo da tentativa de se aproveitar do desconhecimento alheio. Há coisas que passam todas as marcas! Há coisas que não podem passar em claro! Trata-se de, contorcendo regras jurídicas invulgarmente claras e misturando factos, criar a percepção de que tudo correu no melhor dos mundos e segundo os cânones mais exigentes. As explicações da ministra ou do “ministério” não são mais do que, como se diria numa linguagem coloquial, “deitar areia para os olhos dos portugueses”. 

2. Em toda a explicação do ministério, quer fazer-se passar a ideia de que a competência para nomear o Procurador Europeu cabe ao Estado-membro respectivo. E insiste-se até à náusea em que o candidato afinal nomeado foi classificado em primeiro lugar pelo Conselho Superior do Ministério Público (CSMP). Esta asserção constitui o cerne de toda a argumentação ministerial. Eis uma argumentação que é totalmente impertinente e que visa apenas defender o indefensável.

3. Primeiro: a nomeação do Procurador não cabe ao Estado nacional, mas ao Conselho da União Europeia, com base numa lista de três nomes indicados pelo Estado-membro e que é apreciada e graduada por um “comité de selecção” europeu (art. 16.º do Regulamento UE 2017/1939, do Conselho). Alguém tem de explicar à ministra que nem o Governo nem o CSMP têm competência para escolher ou designar o Procurador. À instância nacional cabe apenas o poder de indicar uma lista de três nomes que servirá de base de graduação ao dito comité europeu de selecção e depois ao Conselho.

4. Segundo: a Lei n.º 112/2019 estabelece que a República Portuguesa designa três candidatos ao cargo de Procurador Europeu (art. 13.º, n.º 4, e art. 12.º). Ou seja, como de resto não poderia deixar de ser em face do direito europeu, o Governo não selecciona, não escolhe e não indica o Procurador; limita-se a apresentar três candidatos para ulterior selecção e nomeação pelas instâncias europeias. A discricionariedade do Governo reside em poder escolher três dos seis habilitados pelos dois Conselhos Superiores e apresentá-los aos três como candidatos, mas só – note-se – como meros candidatos.

5. Terceiro: o Regulamento Europeu afasta a ideia, agora invocada pelo ministério, de que possa haver uma graduação ou hierarquização nacional. Os três candidatos estão em rigorosa igualdade de circunstâncias. Do mesmo modo, a lei portuguesa não postula (nem poderia postular) qualquer graduação dos candidatos, mas apenas a selecção de três. Em rigor, cura-se de um concurso de mera “habilitação” e não de “nomeação”: trata-se de saber quem está habilitado a ser candidato português e não de escolher ou pré-determinar qual dos candidatos será nomeado. Em nenhum preceito da lei portuguesa se fala em classificação ou hierarquização das candidaturas. Eis o que se percebe muito bem, já que, nos termos do Regulamento europeu, a graduação cabe exclusivamente ao “comité de selecção”.

6. Quarto: a ideia de que houve uma classificação portuguesa que há-de prevalecer sobre a europeia é simplesmente abstrusa. É um mero pretexto, totalmente avesso ao direito. Na verdade, ocorre perguntar: se há uma hierarquização nacional que deve condicionar a escolha final, para que é que existe um “comité de selecção” europeu e por que se atribui ao Conselho da UE o poder de nomear? Se hão-de ser as instâncias portuguesas a decidir, por que não se estabeleceu no Regulamento Europeu que cada Estado nomeava directamente o “seu” Procurador Europeu? 

7. Quinto: nesta onda de comunicados, fala-se amiúde na antiguidade. E em como o Procurador afinal nomeado tem muito mais experiência do que a candidata que o comité competente classificou em primeiro lugar. O argumento é pobre e risível, próprio de quem não arranja outro. A aceitá-lo como tal, valeria, com foros de dogma, o ditado popular: “a antiguidade é um posto.” O júri europeu não pensa assim, mas, pasme-se, a própria lei portuguesa também não permite fazer da antiguidade um critério de graduação. Por um lado, porque, como se disse, a nossa lei não prevê qualquer graduação, mas apenas habilitação. Por outro, porque mesmo que a admitisse, a lei estabelece, no seu art. 14.º, n.º 1, al. a), que todos os candidatos têm de ter 20 anos de exercício da magistratura. Pois bem, se a própria lei define um requisito fixo de antiguidade (por sinal, muito longo), ela já está definitivamente incorporada na valoração. A antiguidade de 20 anos é um pressuposto de habilitação, não pode ser um critério “móvel” de hierarquização. Aliás, pense-se bem, a partir dos 45-50 anos, que diferença qualitativa faz, em qualquer carreira, ter mais cinco ou mais dez anos de experiência? O argumento não tem cabimento legal, mas, pior do que isso, é, neste contexto, francamente sonso.

8. Este caso é grave e este caso é triste. Está a dar uma péssima imagem do Governo português e do país, junto de outros governos, da Comissão e do Parlamento Europeu. Com as consabidas antipatias de António Costa pelo Rule of Law, que também já são famosas em Bruxelas, e com o eco da não recondução do presidente do Tribunal de Contas e, antes, da procuradora-geral, perfaz-se o ramalhete. O problema, todavia, não é de imagem: é de substância: também aquele Procurador terá um papel decisivo na investigação das fraudes com fundos europeus.

SIM e NÃO

SIM. Lei Europeia do Clima. O Parlamento Europeu acaba de dar um passo decisivo na agenda verde para a Europa e no combate às alterações climáticas. Todo o plano de recuperação deve ser desenhado à luz desta agenda.

NÃO. Josep Borrel. O Alto Representante deu um sinal de pactuar com o regime de Maduro, numa altura em que este foi condenado pela ONU por crimes contra a humanidade. Os venezuelanos esperam mais e diferente da Europa.

Sugerir correcção