Libaneses e israelitas sentam-se à mesma mesa e não é para discutir a guerra

Mergulhado na crise mais profunda desde a guerra civil, o Líbano poderia beneficiar de um acordo que permitisse explorar reservas de gás. Mas o mais provável é que as negociações da fronteira marítima entre os dois países sirvam apenas para o Hezbollah ganhar tempo.

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Viatura da Força Interina das Nações Unidas no Líbano em Naqura, junto à fronteira com Israel Reuters/AZIZ TAHER
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Posto de observação israelita no Mediterrâneo de onde se vê parte da fronteira marítima com o Líbano Reuters/AMMAR AWAD

Há 30 anos que israelitas e libaneses, formalmente em guerra, não se sentavam para debater nenhum assunto que não fosse militar. É exactamente isso que vai acontecer esta quarta-feira, em Naqura, a localidade libanesa mais próxima da linha de separação, onde uma delegação de cada país vai discutir a disputada delimitação das suas fronteiras marítimas sob os auspícios da ONU e através da mediação dos Estados Unidos.

Alguns vêem aqui um prenúncio de uma normalização, mas a verdade é bem mais crua: ambos têm interesse em resolver um conflito que limita a exploração de grandes reservas de gás natural. E a Casa Branca acredita que as perspectivas de reeleição de Donald Trump podem sair beneficiadas se de apresentar estas negociações como mais um progresso no Médio Oriente, semanas depois de ter conseguido que os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein estabelecessem relações com os israelitas.

Paradoxalmente, ou não, o calendário eleitoral americano também foi determinante para levar os libaneses a negociar neste momento. Apesar de este ser um dossier que há anos é gerido pela presidência, o anúncio das conversações foi feito pelo presidente do Parlamento, Nabih Berri, que é o líder do partido xiita Amal, próximo do Hezbollah. Isto a 1 de Outubro, três semanas depois de Washington anunciar sanções contra o principal lugar-tenente de Berri, o ex-ministro das Finanças Ali Hasan Khalil, por ajudar o Hezbollah a movimentar dinheiro e isentá-lo de pagar impostos.

Para o Hezbollah e para o Amal começar as negociações foi uma “decisão táctica para neutralizar as tensões e a perspectiva de mais sanções antes das eleições nos EUA”, diz Mohanad Hage Ali, investigador do think tank Carnegie Middle East Center, citado pela Reuters. Berri viu nas sanções contra Khalil “uma ameaça directa: ‘Se não colaborares vai acontecer-te o mesmo’”, defende, por seu turno, Hilal Khashan, professor de Ciência Política na Universidade Americana de Beirute.​

Aceitar negociar com Israel acontece quando os líderes libaneses enfrentam uma pressão sem precedentes para concretizar reformas profundas, depois da gigantesca explosão no porto de Beirute que destruiu partes da capital e matou perto de 200 pessoas, em Agosto. O acidente foi a última gota numa crise económica e social profunda, que já tinha deixado 75% da população a necessitar de ajuda para sobreviver e acalentado meses de protestos onde se pedia “pão” e se gritava contra o moribundo sistema político do país.

Externamente, o rosto da pressão tem sido Emmanuel Macron, que no início de Setembro foi a Beirute fazer um ultimato: o Presidente francês deu aos políticos libaneses três meses para formarem governo e avançarem com reformas claras; caso contrário, serão cancelados empréstimos internacionais e impostas sanções ao país. Ora a visita de Macron aconteceu um dia depois de o Parlamento ter indigitado o ex-embaixador na Alemanha, Mustapha Adib, para ser o próximo primeiro-ministro – entretanto, Adib demitiu-se sem o conseguir fazer.

"Baralhar e voltar a dar"

Berri e o Hezbollah contribuíram para este desfecho, ao exigirem a pasta das Finanças. Tanto o veterano presidente do Parlamento como o Partido de Deus – movimento que, com o seu poderoso braço armado, apoiado pelo Irão, é a peça chave da política libanesa – preferem negociar com Israel sob mediação dos EUA do que assumir a linha francesa que obrigava ao cumprimento de prazos curtos para reformas no sistema político.

Segundo defende Sami Nader, director do Instituto de Estudos Estratégicos do Levante, os dois grupos xiitas esperam assim evitar mais sanções de Washington até às presidenciais americanas de 3 de Novembro. “Se o [Joe] Biden for eleito não penso que chegue a haver um acordo sobre as fronteiras: eles vão baralhar e voltar a dar”, diz à Al-Jazeera.

Na verdade, o Líbano precisa muito mais do que Israel de ver a disputa marítima resolvida. Enquanto os israelitas já exploram gás no Mediterrâneo Oriental a partir de enormes campos, o Líbano só em 2018 começou as explorações em dois blocos – o consórcio formado pela Total, Eni e Novatek anunciou em Abril que as primeiras perfurações exploratórias, no bloco 4, não tiveram resultados conclusivos. Ora, é o litígio fronteiriço que impede as perfurações no bloco 9, considerado mais promissor, mas situado em águas disputadas com Israel.

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