A arte espanhola de dividir e não reinar

O vídeo tem 14 minutos e nele participam 183 personalidades que, na esmagadora maioria dos casos, se limitam a dizer três palavras: “Viva el rey.” É aqui que está Espanha – no meio de uma pandemia em que tem um dos piores registos europeus, os políticos espanhóis ainda conseguiram encontrar espaço para um assomo de crise constitucional que levou estas personalidades reunidas na plataforma Libres e Iguales – constituída em 2014 em contraponto ao movimento independentista catalão – a unirem-se em torno da figura do chefe de Estado que entendem estar ameaçado.

É um talento especial que a classe política espanhola e, muito particularmente, este último Governo parece ter: naquilo que toca cria divergência. Num momento em que o que se exige é união, o que se tem é um elaboradíssimo tratado sobre a arte de alienar, se não amigos, pelo menos circunstanciais aliados. Com um mau arranque no combate para epidemia, o Governo nunca se conseguiu entender com as regiões autonómicas, muito especialmente com Madrid, governada pelo PP, nem com nenhum partido de oposição. De parte a parte, mesmo perante uma ameaça comum como a epidemia, as divergências políticas valem sempre mais. Qualquer pretexto é bom para a desunião.

O último episódio com o rei começou no final do mês passado, quando o Governo achou que o chefe de Estado não deveria comparecer a uma cerimónia de promoção de juízes em Barcelona. Fontes governamentais alegaram que queriam “proteger” Felipe VI num território, a Catalunha, em que não é bem-vindo por parte da população. O rei deixou cair que teria gostado de ir, o poder judicial manifestou o seu desagrado e isso foi suficiente para o aliado de Sanchez no Governo, Pablo Iglesias, líder do Podemos – também a braços com polémicas na Justiça –, atacar o rei, acusando-o de falta de neutralidade política. Ontem o Dia de Espanha foi comemorado com buzinadelas contra o Governo, vivas ao rei e um ambiente glaciar nas cerimónias comemorativas.

Por isso, não se despreze aquilo que lá fora tantos continuam a admirar: a capacidade que Governo, Presidente da República e oposição tiveram de acobertar as suas divergências perante uma ameaça a todos. Olhando a dificuldade que está a ser a aprovação do Orçamento esse tempo pode estar a terminar, apesar de a pandemia estar longe do fim. Poderemos sempre encontrar refúgio na saudade que, pelo menos nos tempos que correm, será mais proveitosa do que a raiva espanhola.

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