Plano de Ação para a modernização da Rede Ferroviária Portuguesa

Se queremos, de facto, aproveitar esta crise para modernizar o país e a Rede Ferroviária Portuguesa, só temos um caminho: além de “Visão”, precisamos de coragem e Ação!

A crise da pandemia de covid-19, pelo menos nas suas consequências económicas e sociais, veio para ficar. Estamos perante a maior crise global pós Segunda Grande Guerra, isto é, dos últimos 75 anos, com as economias internacionais, em particular do espaço europeu, a serem fortemente afetadas, prevendo-se para o final do ano recessões da ordem dos 10%. 

Todavia, as crises são também oportunidades. Assim, a União Europeia aprovou recentemente um pacote de apoio aos países membros, o chamado Fundo de Recuperação, a vigorar durante os próximos dez anos, no montante global de 750 mil milhões de euros, cerca de metade a fundo perdido e a outra metade a reembolsar, mas a juros praticamente simbólicos. A Portugal vão caber cerca de 26 mil milhões de euros, o que, adicionados aos 29 mil milhões que já estavam previstos, significa que o país vai ter à sua disposição nos próximos dez anos cerca de 55 mil milhões de euros. É uma quantia avultada, que não deve ser desperdiçada.

Claro que uma parte significativa deste montante será para pagar despesas de saúde e apoios sociais derivados da pandemia e outra parte importante deverá ir para o apoio às empresas, principalmente dos setores mais atingidos pela crise. Ainda assim, ficarão disponíveis algumas dezenas de milhares de milhões de euros para investimento, nomeadamente, em infraestruturas. Importa então refletir sobre quais os projetos em que o Estado deverá investir nos próximos anos, que sejam potenciadores da melhoria das condições de vida dos cidadãos e, também, da criação de riqueza no futuro.

Quanto a infraestruturas de transportes, a rodovia não deverá ser uma prioridade, pois o país já possui uma excelente rede de autoestradas, grande parte com tráfego reduzido. Uma vez que as infraestruturas aeroportuárias e portuárias estão (ou vão ser) concessionadas e os investimentos a realizar serão encargo dos concessionários, a atenção deverá ir fundamentalmente para a ferrovia, que é mais eficiente energeticamente mas tem sido, de certa forma, o parente pobre nas últimas décadas. O problema é que se tem falado bastante de ferrovia mas, infelizmente, não existem ideias claras sobre o que, e como, fazer.

Uma questão crucial para o futuro da Rede Ferroviária Portuguesa prende-se com a bitola (distância entre carris): manter a bitola atual, chamada de “Ibérica”, ou construir uma rede de bitola UIC, que em Portugal alguns apelidam de “bitola Europeia”, a qual é a existente na generalidade dos países da União Europeia. Outra questão importante são as velocidades permitidas pela rede atual no transporte de passageiros, as quais são, de um modo geral, modestas, designadamente no eixo Lisboa-Porto. De facto, apesar dos muitos milhões gastos, estamos aqui praticamente como há meio século atrás, nas quase três horas.

Sobre estas questões existem, basicamente, três posições.

Por um lado, há os que acham que não se deve mudar nada, possivelmente por terem interesse em manter uma bitola que nos manterá isolados do resto da Europa, quando muito, introduzir pequenas melhorias nos troços mais deficientes ou construir variantes nos troços mais sobrecarregados da rede existente.

Há depois os que acham, como o atual Governo, que a bitola não é um problema urgente, que o que é preciso é ir substituindo as travessas das linhas atuais pelas chamadas travessas polivalentes (que dispõem de furações também para a bitola UIC), para “um dia” se mudar então a bitola, “empurrando o problema com a barriga”. Só que escamoteiam que nessa altura essas linhas deixarão de poder funcionar em bitola Ibérica, o que vai obrigar à mudança da bitola de todas as linhas da rede existente, com custos astronómicos.

Há ainda um grupo que defende a criação no país de uma rede de bitola UIC, de raiz, constituída por várias linhas de via dupla nos principais eixos nacionais e na ligação a Espanha, autónoma da rede atual, num investimento global de mais de 12 mil milhões de euros, incluindo uma nova travessia ferroviária do Tejo em Lisboa. Seria, obviamente, um investimento muito pesado. Além disso, se bem que alguns eixos justifiquem linhas novas, de altas performances, noutros tal não se justifica, pelo menos, nos tempos mais próximos.

Ora, uma rede de bitola UIC será uma enorme mais-valia para o país, pois irá facilitar o trânsito de mercadorias e também de pessoas. De facto, como a maior parte das nossas transações comerciais é com os países do centro europeu e a própria Espanha está a alterar a sua rede ferroviária para a tornar compatível com a desses países, seria trágico Portugal ficar isolado. O grande desafio é conseguir uma solução que consiga um bom equilíbrio entre os benefícios potenciais e os investimentos necessários.

Num livro que publiquei em 2019, intitulado Grandes Projetos de Obras Públicas. Desafios Portugal 2030, é apresentado em detalhe um Plano de Ação para a criação dessa rede, que apresenta uma excelente relação benefício-custo.

De acordo com esse plano, a rede de bitola UIC será para tráfego misto, isto é, para o transporte de mercadorias e também de passageiros, em Alta Velocidade (a 300 km/h), nos trajetos Lisboa-Porto e Lisboa-Caia. Será genericamente constituída por dois eixos horizontais: o corredor Lisboa-Caia, com continuação para Madrid e ligação com o corredor Valladolid-Irun; e o corredor Pampilhosa-Vilar Formoso, com continuação pelo corredor Valladolid-Irun; e um eixo vertical, o corredor Porto-Lisboa-Sines, com ligações também aos portos de Leixões, Aveiro e Setúbal (ver infografia junta).

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A Linha Lisboa-Caia será de via dupla, nova entre Poceirão e Caia, enquanto no troço Lisboa-Poceirão será usada a linha atual, convertida para bi-bitola (com três carris, para poderem circular comboios nas duas bitolas) e com passagem pela Ponte 25 de Abril, dispensando assim a construção de uma nova travessia do Tejo em Lisboa. A Linha Lisboa-Porto será nova e de via dupla; no troço entre Lisboa e Vila Nova da Rainha será usado o canal da Linha do Norte, ocupando duas das quatro vias existentes e construindo um túnel entre Alhandra e V. F. de Xira. A linha Pampilhosa-Vilar Formoso será a atual linha da Beira Alta, em via única, convertida para bi-bitola; como irá servir fundamentalmente para o transporte de mercadorias, o traçado atual, com algumas correções, é suficiente, já que o tráfego previsível será pouco significativo. Haverá ainda um ramal de via única, de ligação do Poceirão a V. N. da Rainha, para que os comboios de mercadorias não tenham que atravessar Lisboa. A ligação Lisboa-Porto passará a ser feita em menos de hora e meia!

A rede proposta terá 920 quilómetros de extensão, dos quais 590 serão novos, pertencendo os restantes à rede existente, convertidos para bi-bitola. As estações de passageiros serão comuns às duas redes; em Lisboa, será em Entrecampos, um sítio central, sobre a Linha de Cintura. As duas redes não se excluem, serão complementares e o material circulante atual continuará a ser utilizado.

O custo dessa rede será de cerca de cinco mil milhões de euros, ou seja, cerca de um terço do custo da rede do “TGV” que muito se discutiu há uma década atrás. Trata-se de um montante perfeitamente englobável no pacote financeiro ao dispor do país durante os próximos dez anos e, portanto, uma oportunidade única para dar um salto em frente. Listas infindáveis de pequenos projetos não nos levam a lado nenhum.

Se queremos, de facto, aproveitar esta crise para modernizar o país e a Rede Ferroviária Portuguesa, só temos um caminho: além de “Visão”, precisamos de coragem e Ação!

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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