Supremo Tribunal brasileiro permite fuga de chefe do narcotráfico

Um juiz do STF autorizou a libertação de um dos líderes do PCC, mas o presidente do tribunal suspendeu a decisão. Só que o criminoso fugiu e é provável que já esteja no Paraguai.

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O juiz Marco Aurélio Mello autorizou a libertação de um dos chefes do Primeiro Comando da Capital Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Na manhã de sábado, um dos principais líderes do narcotráfico brasileiro saiu pelo seu pé da Penitenciária de Presidente Venceslau, no interior do estado de São Paulo, ao fim de pouco mais de um ano após ser preso e bastante longe de cumprir os mais de 25 anos a que foi condenado. A libertação teve origem numa polémica decisão de um dos juízes do Supremo Tribunal Federal (STF), que a viu, horas depois ser revertida. Mas, entretanto, o criminoso já estava fora do radar das autoridades.

André Oliveira Macedo, conhecido no mundo do crime como André do Rap, é um dos líderes do Primeiro Comando da Capital (PCC), uma das maiores organizações criminosas do Brasil, e considerado responsável pela internacionalização das redes de tráfico de droga operadas pelo grupo. Para isso, valia-se das suas ligações à 'ndranghetta, a máfia calabresa, e a inúmeros contactos no estrangeiro, incluindo em Portugal, segundo as autoridades brasileiras.

O cabecilha do PCC foi preso em Setembro do ano passado, numa operação policial num condomínio de luxo em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, onde vivia rodeado de helicópteros, iates e mulheres. André do Rap era procurado há vários anos depois de ter sido condenado em dois julgamentos com penas que totalizavam mais de 25 anos de prisão.

Na última sexta-feira, o juiz do STF, Marco Aurélio Mello, decidiu conceder um habeas corpus e deu ordem para que André do Rap fosse libertado, deixando em alvoroço, uma vez mais, a cúpula do poder judicial brasileiro. O juiz justificou a libertação de André do Rap pela ausência de uma condenação transitada em julgado – a defesa do líder do PCC aguarda o desfecho do recurso às condenações emitidas nas instâncias inferiores.

O Código de Processo Penal brasileiro suporta a tese do juiz do STF ao prever a revisão obrigatória, a cada 90 dias, dos presos preventivos para avaliar se a medida de coação se mantém justificada. A prisão de André do Rap foi revista pela última vez a 25 de Junho, segundo o despacho assinado por Mello. “Uma vez não constatado acto posterior sobre a indispensabilidade da medida, formalizada nos últimos 90 dias, tem-se desrespeitada a previsão legal, surgindo o excesso de prazo”, concluiu o juiz.

A decisão foi recebida com perplexidade por vários políticos, incluindo o governador de São Paulo, João Doria, que a descreveu como “um desrespeito ao trabalho da polícia e uma condescendência inaceitável com criminosos”. O Governo do Presidente Jair Bolsonaro também considerou despropositada a libertação de André do Rap, de acordo com a Folha de São Paulo.

A deputada federal Carla Zambelli, aliada do Governo, disse que vai apresentar uma proposta para alterar o artigo do Código de Processo Penal que obriga a revisão da prisão preventiva a cada 90 dias. A alínea em causa tem origem no pacote anticrime proposto pelo então ministro da Justiça, Sergio Moro, e aprovado no final do ano passado, embora a proposta inicial não a incluísse.

“Surrealismo jurídico”

Menos de 24 horas depois da decisão de Mello, o presidente do STF, Luiz Fux, suspendeu o habeas corpus concedido pelo colega, respondendo a um pedido feito pelo Ministério Público Federal que contestava a libertação de André do Rap. À luz desta nova sentença, o cabecilha do PCC deveria regressar de imediato à prisão.

No entanto, à hora em que Fux emitiu o seu entendimento sobre o caso, já André do Rap estava fora do alcance da polícia. Assim que saiu da Penitenciária de Presidente Venceslau, o traficante dirigiu-se para Maringá, no estado do Paraná, onde terá apanhado um avião com destino desconhecido – as autoridades estão convictas de que procurou refúgio no Paraguai, onde existe uma forte presença do PCC. Desde sábado, que André do Rap continua a ser procurado pela polícia brasileira.

O desacerto entre os juízes do STF vem expor, mais uma vez, a desarmonia no tribunal de topo da hierarquia judicial brasileira, caracterizadas por decisões opostas que marcaram grande parte da Operação Lava-Jato. Marco Aurélio Mello não escondeu o desconforto com a suspensão da sua decisão e apontou o dedo ao colega.

“Posar de bom moço é bom, né? Mas eu não jogo para a turba”, afirmou Mello ao jornal Folha de São Paulo.

O jurista e antigo presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, José Roberto Batochi, disse, citado pelo UOL, ser “estranho que um ministro [como são designados os juízes dos tribunais superiores] possa revogar monocraticamente a decisão de outro ministro, seu igual e, além do mais, juiz natural da causa”.

O presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, disse que o desentendimento entre os dois juízes é um exemplo de “surrealismo jurídico”. “Este episódio mostra a completa desconexão entre justiça e segurança. Se olharmos para quem fica preso no país, o caso revela as prioridades e mentalidades que regem a área no Brasil”, acrescentou o especialista através do Twitter.

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