Peneda-Gerês 50 anos depois: parque nacional é distinção ou maldição?

Este ano e de uma forma intolerável, voltou a consentir-se algo que deveria encher de vergonha quem com poder de decisão e não se cansando de abusar da marca «Parque Nacional» nada faz para lhe por cobro.

11 de outubro de 1970. Faz hoje precisamente cinquenta anos que o presidente da república da altura inaugurou no Vidoeiro, Gerês, o primeiro e único parque nacional português. A efeméride estimula a elaboração de balanços, a evidenciação de conquistas, o lamento de perdas. Pensando no futuro, motiva que se proponham estratégias visando corrigir males de que o Parque Nacional (PNPG) nunca se livrou e que por isso continuam a penalizar o património justificador da sua criação. Para tal, não faltarão oportunidades no sugestivo período que agora se inicia neste 11 de outubro de 2020 e que culminará em 8 de maio de 2021, dia em que se completarão os cinquenta anos da promulgação do decreto que efectivamente criou esta área protegida.

Neste momento sopram fortes ventos de mudança. O progressivo apagamento da autoridade nacional para a conservação da natureza que há muito se vem revelando (também) na rede das áreas protegidas, confirma-se de uma forma avassaladora, agora que vão avançar as comissões de cogestão presididas por autarcas, a quem o Estado central decidiu entregar a direção dos nossos parques e reservas. Entre muitos outros argumentos inexplicáveis, defende quem a promoveu, que o ICNF, Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, manterá as suas competências, que continuará a exercer a sua função. Se assim é, porque mudar? Porquê apoucar o seu papel em vez de reforçar os meios para o exercer? Porquê transferir para as autarquias, que têm as suas enormes e justificáveis atribuições nos respectivos territórios, uma missão para que não estão vocacionadas e que agora mais facilmente será subvertida quando se definirem planos de investimento e prioridades que não deixarão de confirmar a opção em apostar no turismo e nas formas de o incentivar em detrimento de medidas de proteção e recuperação dos valores naturais que a preservação da Peneda-Gerês tanto reclama.

Concretizo com uma situação, que mais do que muitas outras, suporta as preocupações até aqui manifestadas.

Este ano e de uma forma intolerável, voltou a consentir-se algo que deveria encher de vergonha quem com poder de decisão e não se cansando de abusar da marca «Parque Nacional» nada faz para lhe por cobro. A Mata de Albergaria e as encostas adjacentes, constituem um dos mais importantes redutos da natureza que exaustivamente se diz querer preservar no Gerês. As vias que a atravessam e que se justificam para permitir o acesso à fronteira da Portela do Homem - recentemente objecto de um recondicionamento que apenas visou privilegiar, mais ainda, o tráfego motorizado - são uma ferida que continua a sangrar no coração do PNPG, e que desde o início impõem uma fractura inconcebível na sua maior Área de Proteção Total. Pelo seu impacto, pelo que elas facilitam sem qualquer controlo eficaz, nomeadamente num troço particularmente sensível do rio Homem.  

Se com o Parque Nacional gerido pela tutela foi sempre assim, o que pensar do que vem aí? Ecos das primeiras iniciativas da nova direção que se avizinha, referem a pretensão de instalar novas estruturas, passadiços ou algo similar, não para preservar a importante natureza que todos gabam, mas para minimizar o número de acidentes que se têm registado na procura cada vez maior que se quer, sem limitações, fomentar.

A usufruição humana de um espaço natural criado para a preservação dos seus valores naturais, faz sentido, tem que ter lugar, se assente num ordenamento do território que acautele valores que na maioria do território nacional já se perderam ou até nunca existiram. Mas que maior valia traz para a região, as avalanches de merendeiros que perigosamente se concentram na «piscinas naturais» e que não veem nada do que de importante está para além das poças em que mergulham? Nelas e por todos os percursos que a elas conduzem deixam um rasto de lixo que este ano foi exponenciado pela pandemia.

Há uma contradição gritante entre a forma como se exalta o «único parque nacional» e o que contra ele se permite, reflexo de um desconhecimento incompreensível das exigências que a sua conservação impõe, ou, pior ainda, de um oportunismo inaceitável de uma classificação que foi atribuída para o proteger e não para o ameaçar.

A salvaguarda da Mata de Albergaria e de todo o sensível espaço envolvente requer o encerramento definitivo da estrada da Geira Romana ao trânsito motorizado, a proibição da utilização do rio Homem junto à fronteira da Portela do Homem, como zona balnear. Neste arranque da Comissão de Cogestão da Peneda-Gerês, as câmaras municipais - nomeadamente a de Terras de Bouro - têm uma oportunidade de ouro de dar um sinal claro do seu empenho na salvaguarda do Parque Nacional, implementando algo que nunca foi feito no Gerês, mas que se tem multiplicado em áreas protegidas de outros países nomeadamente em Espanha. Pôr a funcionar, principalmente nos meses de verão, um sistema de transporte comunitário, baseado em «minibus» que levem e recolham visitantes nas várias entradas/saídas da área em causa, concretamente na Portela de Leonte e do Homem, na barragem de Vilarinho da Furna, ou mesmo a partir das Termas do Gerês. Transportes pagos no decurso dos quais se aproveitaria para informar os turistas do que podem apreciar, da forma como o devem fazer.

Será um dos presentes merecidos pela Peneda-Gerês neste seu quinquagésimo aniversário. E uma forma de contrariar o Estado que tendo-o inicialmente construído, discriminado positivamente, incompreensivelmente permitiu que se usasse e abusasse do seu singular estatuto, muitas vezes para o delapidar. E que agora envereda pela sua alienação.

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