Mundo: recarregar, por favor

Como é que ela reagiria às restrições de movimentos impostas pela pandemia? A mercearia do Manelito teria inflacionado ainda mais os preços, aproveitando a corrida inicial aos enlatados e papel higiénico?

Uma amiga ligou-me a dizer que Quino tinha morrido e a explicar-me que, por causa disso, o plano do jornal fora alterado e que o meu texto teria de ficar só na edição online. Que me importava eu de ceder uma página a Quino? Nada. Mas, na altura, nem nisso pensei, o que me ocorreu foi: mas ele já não tinha morrido?

Não vou agora enganar-vos e dizer-vos que sou fã incondicional da Mafalda (que até sou) e que sei de cor as suas melhores tiradas, nem brindar-vos com a minha favorita. Não tenho. Apesar de “Parem o mundo, que eu quero descer” ser uma frase que repito várias vezes, mesmo sem saber (não sabia) que fora proferida pela argentina cabeluda de punho erguido em sinal de protesto.

No dia em que Quino morreu, a montra que é a página do Facebook encheu-se de tiras recuperadas da personagem mais famosa do ilustrador. Havia muitas que eram as tais favoritas de alguém. Dei por mim a olhar para elas e a pensar que, realmente, o meu cérebro é mesmo muito selectivo. Gosto da Mafalda, sempre gostei, apesar de termos uma diferença inconciliável (eu adoro sopa, é o único prato de que sinto realmente falta quando me ausento por muito tempo do país), mas, tal como com outras personagens e autores, o meu cérebro recusa-se a guardar para sempre até a melhor das suas tiradas.

Acho que é o mesmo mecanismo que me impede de sublinhar frases extraordinárias em livros, recitar poemas de cor, atribuir citações inspiradoras aos seus verdadeiros autores, ter heróis em pessoas que não conheço de facto, pertencer a um clube ou a um partido político e ter de reler um livro que estou a pensar oferecer a alguém, porque, apesar de saber que gostei muito dele quando o li, já não me lembro muito bem da história e não sei se se adequa à pessoa em causa. E é provável que também seja o mesmo mecanismo que me levou a pensar que Quino já tinha morrido. Simplesmente, não tenho espaço para guardar tanta informação.

No dia em que Quino morreu lembrei-me do grosso livro de capa vermelha que é o Toda a Mafalda (ou era, naquela edição do século passado), e que uma amiga recebeu quando éramos miúdas. Não sei se ela mo emprestou, mas acho que sim, porque me lembro de o ler de uma ponta à outra, e de o ter comigo, por algum tempo. Pode ser só um truque de memória, mas foi assim que o guardei. E não fui procurar os meus livros da Mafalda, que estava convencida de ter, algures, nas estantes cheias de livros de um dos quartos da casa. Foi só no dia seguinte que, desapontada, percebi que só tinha um livro pequenino da miúda irreverente, em espanhol, porque o comprei numa das vezes que estive em Buenos Aires. Carreguei-o comigo e, nos dias seguintes, até acabar, voltei a lembrar-me porque gostava tanto da Mafalda, e dos seus improváveis amigos.

E não pude deixar de me surpreender com o facto de aquela miúda, cuja última tira Quino criou em 1973 (antes de eu nascer, portanto), continuar tão actual. Acho que é dessa matéria que são feitos os génios. Não havia ali nada que não pudesse ter sido escrito ontem. Hoje. Amanhã. O que me levou à pergunta seguinte: como seria a Mafalda hoje?

A Mafalda do Quino tem uma infância como a que me lembro de ter tido: feita na rua, entre amigos, com tempo para televisão, mas sem mais dispositivos a interromper-lhe a vida. A Mafalda de hoje teria Facebook, Instagram e faria jogos online com as amigas que estão a quilómetros de distância, nas suas próprias casas. Não pergunto, teria. Porque a Mafalda nunca esteve fora da realidade e a realidade hoje é essa.

Como é que ela reagiria às restrições de movimentos impostas pela pandemia? A mercearia do Manelito teria inflacionado ainda mais os preços, aproveitando a corrida inicial aos enlatados e papel higiénico? E que tamanho teria a tristeza da pequena Liberdade por não poder ser convidada para lanchar em casa da amiga? E a angústia do tímido Filipe tornar-se-ia insuportável?

Tenho um sentimento contraditório em relação a isto. Por um lado, aflige-me querer fazer das personagens algo que elas não são — se Quino quis que a Mafalda parasse em 1973, é aí que ela deve ficar. Por outro, não posso deixar de desejar descobrir o que ela teria para dizer deste mundo em que vivemos. O que diria de alguém que acha que é legítimo apresentar na convenção do partido a que pertence uma proposta a defender a remoção dos ovários das mulheres que abortam? (Notem bem: aquela pessoa achou que não havia problema em apresentar aquela proposta, que era legítimo fazê-lo entre os seus pares partidários, e isso é que nos deve preocupar a todos, não o desfecho do caso.) O que diria ela de um mundo em que países são liderados por Trumps e Bolsonaros, que dizem tudo e o seu contrário, desde que seja para o seu próprio benefício? E de pessoas que escondem a cara atrás de máscaras de Carnaval, para intimidar e ameaçar o outro?

Talvez fosse demais para ela. Continuar a assistir aos mesmos disparates, crimes e atentados ao mais básico da nossa humanidade, década, após década, após década, era capaz de ser insuportável até para a sua infindável irreverência e capacidade de seguir em frente.

O mundo, com tudo o que tem de maravilhoso, não anda muito recomendável. Pará-lo e descer por um bocado é um privilégio que não nos é dado, mas que é obviamente uma falha tremenda que a comunidade científica deveria estar a tentar resolver. Porque era bom poder parar e descer por um pouco. De cada vez que Trump abre a boca. Quando estamos demasiado cansados. Quando temos o coração partido. De todas as vezes em que a realidade é pior do que a ficção. Que sorte tiveste em poder parar, Mafalda. E não é por teres deixado de comer sopa. Aí, onde estás, não há um botão para recarregar o mundo? É que isto já não vai lá só com caixas de primeiros socorros.

Sugerir correcção