Cinza pela goela abaixo!

No incêndio de Proença-a-Nova e Oleiros queimaram-se mais de 20 mil hectares de território. São 20 mil campos de futebol juntos. E, no entanto, poucos lhe ligaram. Foi o maior incêndio do ano e um dos maiores dramas de que há memória, mas a sociedade encolheu os ombros e bocejou.

Somos socialmente uma comunidade pacífica de revoltados.
Miguel Torga

Mais um texto sobre os incêndios?! Irra, já chateia, é sempre a mesma lengalenga. E, além disso, já estamos a entrar no outono, até já choveu e tudo, a nossa cabeça já está noutro lado. No incêndio de Proença-a-Nova e Oleiros queimaram-se mais de 20 mil hectares de território. São 20 mil campos de futebol juntos. Mais uma vez, as chamas levaram tudo à frente, pinheiros, eucaliptos, castanheiros, oliveiras, mas também pomares, hortas, casas, animais, vida... E, no entanto, poucos lhe ligaram. Foi o maior incêndio do ano e um dos maiores dramas de que há memória, mas a sociedade encolheu os ombros e bocejou.

Depois de 2017, se ninguém morre, já não importa. É só mais um fogacho lá naquelas terras esquecidas, pobres, brutas, iletradas, sujas. Que interessa isso? A nós, aqui nas cidades do litoral, isso não chega. É no nosso país, repito: nosso, mas não chega cá. Havíamos de vos enfiar cinza e carvão pela goela abaixo. As vossas casas haviam de ficar destelhadas e cobertas de fuligem. Os vossos animais de estimação carbonizados no sofá. Os vossos familiares desalojados na rua. A vossa comida transformada em esturro. Das vossas janelas o olhar mergulhar num negrume permanente, desolador, morto, todos os dias durante muitos dias. A vergonha devia vestir-vos de luto. Talvez assim acordassem e saíssem desse frouxo torpor de bolha climatizada. 

Que raio de sociedade esta! Arvora-se em modernaça por cavalgar os temas que mais soundbyte e likes produzem: as alterações climáticas, os incêndios na Amazónia, os refugiados, as black lifes do outro lado do Atlântico, os cães em canis ilegais. Será que têm noção da quantidade de dióxido de carbono lançado para a atmosfera por este incêndio? Do ror de animais selvagens dizimados e biodiversidade perdida? Do número de pessoas que ficaram sem o que comer, sem casa ou sem fonte de rendimento? Estas vidas não vos importam? Não vos comovem? Deve ser porque não têm uma Greta para conferir credibilidade ou uma câmara de televisão por trás onde vocês apareçam enfunados de indignação e vociferando justiça. Sois uber-ecologistas, influencers do pechisbeque, falsos atores do futuro. No que toca a consciência, sois mais estéreis e desoladores que o dia do rescaldo. Sois uma vergonha! Somos todos uma vergonha! Todos, sem exceção.

É o nosso país, repito: nosso, e o que aqui acontecer influencia-nos a todos, hoje e amanhã, aqui e do outro lado do globo. Foi aqui que muitos de vós vieram passar as férias, refugiar-se do confinamento citadino. Foi aqui que vieram “respirar natureza”, vislumbrar horizontes, provar boa gastronomia e produtos locais, foi aqui que foram bem acolhidos por quem cá vive e persiste. Onde está isso tudo agora? Esfumado na atmosfera, talvez até nos vossos pulmões. Somos cidadãos de Portugal, devíamos exigir outra paisagem, outro modelo para estes territórios. Sem a sombra dos interesses instalados, sem burocracias onanistas, conivências partidárias ou cobardias de ocasião. Enfim, sem medo. Exigir um pacto de regime a 50 anos. Cuidar do planeta e evitar as alterações climáticas começa no nosso quintal. Era por isto que devíamos vir para a rua e inundar as redes sociais. Enquanto não o fizermos vamos continuar a engolir cinza todos os anos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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