Carta de uma criança disléxica ao seu melhor amigo

Nunca disse isto a ninguém, mas às vezes as letras dançam. Outras vezes as letras baralham-se e juntam-se todas num comboio de letras sem fim.

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Adriano Miranda

Querido amigo,

Às vezes fico a pensar nos tempos tão felizes que passámos antes do início da escola. Brincávamos o dia todo e eu era um miúdo alegre e muito feliz. Entrámos no primeiro ano e sentirmo-nos importantes. A mãe comprou-me o material todo e uma mochila com rodinhas. Senti-me crescido.

Os primeiros dias foram bons, naquele entusiasmo de algo completamente novo. Entretanto a professora começou a ensinar-nos as letras. Começámos pelas vogais, os ditongos e as consoantes. Não percebo como é que vocês sabem o que têm de escrever. Eu não sei. Não consigo distinguir bem os sons. Troco as letras. Não consigo ler as palavras simples.

Tenho vergonha. Comecei a gostar menos de ir para a escola. Tenho medo que a professora me mande ler ou me faça perguntas. Isso faz-me dor de barriga. A mãe não está preocupada. Diz carinhosamente que cada um tem o seu ritmo e que eu vou aprender a ler como os outros, mas o tempo vai passando e a minha vida na escola vai-se complicando. Tenho de arranjar imensos estratagemas para a turma não perceber a minha enorme dificuldade em ler. Fico envergonhado com as perguntas na sala de aula e detesto ser o centro das atenções. Funciono mal sobre pressão e tenho muita dificuldade em memorizar.

Não sei como é que vocês aprendem tão rápido. Eu sinto-me burro. Depois há uma coisa estranha quando leio. Nunca disse isto a ninguém, mas às vezes as letras dançam. Outras vezes as letras baralham-se e juntam-se todas num comboio de letras sem fim. Onde tu vês palavras separadas, eu vejo uma palavra gigante sem espaços.

Recebi os testes e tive “Insuficiente”. Usei um truque que a mãe me ensinou de apertar muito as mãos para não chorar. Mas as lágrimas caíram devagarinho pela cara abaixo. Não é justo. Vocês tiveram todos boas notas. Perguntaram a minha e olharam-me espantados. Esse olhar doeu. Eu fiquei triste mesmo triste. Detesto a escola.

A mãe levou-me a uma médica. Acho que se chama terapeuta. Fiquei horas a fazer testes. Saí de lá muito cansado. Não sabia nada do que a médica perguntava. Achei que era má. Tive medo. A mãe estava comigo e isso deu-me coragem. A médica disse à mãe que eu era disléxico e que tinha de trabalhar muito todos os dias. Eu chorei, e se queres que seja honesto, a mãe também.

Sabes o que é ser disléxico? Eu também não sabia. Mas a terapeuta explicou à mãe que eu não era nada burro. Eu simplesmente aprendia de outra forma, porque na minha cabeça a “gaveta” onde está a leitura a escrita e a memorização é diferente da vossa. Se é diferente da vossa, isso significa que não abre com a mesma chave, percebes?

A médica disse que tínhamos de procurar a chave que abrisse a minha gaveta da leitura. Quando eu ficava com medo e irritado a gaveta fechava-se com um estrondo. Explicou também à mãe que não precisamos de aprender todos da mesma forma, e que a maneira de abrir a minha gaveta da leitura era com muito trabalho, muita confiança e muita imaginação. E que eu ia aprender o que todos os meninos aprendem, só que com jogos, mnemónicas, canções. Se todos aprendêssemos assim até me pareceria divertido!

Ao mesmo tempo fiquei preocupado. Não quero trabalhar mais. Mas a médica disse uma coisa muito gira. Sabias que há grandes génios e pessoas de sucesso disléxicos? O Einstein, o Steve Jobs, o Spielberg, o Churchill... Fiquei entusiasmado. Será que também vou ser famoso? Pelo que eu percebi as pessoas disléxicas têm superpoderes diferentes das outras: são muito criativas, estão muito habituadas a encontrar soluções, e conseguem ligar-se muito rapidamente aos outros. A mãe falou-me de conexão.

Eu não sei. Só sei que preciso de ti, da turma e da professora. Sabes que agora que sei que sou diferente, por um lado fiquei contente de não ser burro, mas por outro tenho vergonha porque ficam todos a olhar para mim. É tão mais fácil sermos todos iguais...

Preciso da tua ajuda. Eu preciso de ler baixinho para dentro e para fora para autocorrigir as letras dançarinas. Podes esperar um bocadinho? Não te rias com os meus erros no ditado. Não é falta de esforço, nem de trabalho. Resulta do facto de a minha “gaveta” ser diferente. Eu vou melhorar mas tenho de me esforçar muito mais que tu. Não gozes comigo quando não me lembro da tabuada ou quando dou imensos erros. Eu só memorizo quando associo o facto a uma experiência e por isso demoro mais tempo.

A professora vai precisar de me ensinar de forma diferente. Eu posso ter testes adaptados, mas não penses que sou favorecido. Nada disso. Eu vou aprender o mesmo que tu, só que de outra forma. Não vale a pena fazeres comparações sobre as notas dos testes. É possível que me ganhes sempre, mas podes ter a certeza que quando surgir um problema fora da caixa eu serei o primeiro a encontrar uma solução inovadora e a ver a big picture. Acredita que a minha sensibilidade acima da média vai ajudar em muitas situações, porque aí eu chego lá muito mais rápido que vocês.

Querido amigo, esta conversa toda só para te dizer que para aprender eu preciso de ter orgulho em ser diferente, e só consigo fazer isso se tu e a turma perceberem o que é a dislexia e me aceitarem como sou. Preciso mesmo de ti. Sabes que descobri que a chave para abrir a minha gaveta da leitura tem um nome? Chama-se Inclusão.

Agora que já desabafei, vamos aproveitar para brincarmos sem parar. Só há uma brincadeira que não vale: nada de esconder chaves, boa? Give me five!

Do teu amigo disléxico


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