A linha à nossa frente salva vidas

A pandemia de covid-19 fechou-nos em casa e colocou-nos gráficos à frente. Quando saímos passámos a ter linhas aos nossos pés. O design gráfico é mais do que traços, rabiscos e autocolantes e pode salvar-nos a vida.

Foto
Reuters/Hannah Mckay

Não falo do sinal de trânsito que nos avisa de uma falésia ou da presença de crocodilos no rio. Falo daquela linha que temos à nossa frente na fila do supermercado, do placard com instruções de etiqueta respiratória à entrada do restaurante e das curvas achatadas que vemos no jornal. À primeira vista parecem traços, rabiscos e autocolantes irrelevantes, mas sempre estiveram presentes na nossa vida.

Uma das primeiras aplicações do design gráfico em saúde remonta a 1854 e pertence a Florence Nightingale, enfermeira britânica que serviu no exército inglês durante a guerra da Crimeia. O gráfico que apresentou no parlamento inglês mostrou que a maioria das mortes se devia aos escassos cuidados de higiene nas enfermarias do exército e levou a várias mudanças nas condições sanitárias em que os soldados eram tratados.

Também em 1854 John Snow, médico britânico considerado pai da epidemiologia moderna, utilizou o design para salvar milhares de vidas. A cólera matava milhões de pessoas no mundo e em Londres esse valor atingia os 15 mil óbitos. Ao mapear o local dos óbitos durante um dos maiores surtos conseguiu identificar a possível fonte de infecção na famosa Broad Street e impedir que muitos mais morressem.

"Diagrama de causas de mortalidade no exército a Este", publicado em "Notes on matters affecting the health, efficiency and hospital administration of the British army" (Nightingale, 1958) Wikimedia
"Mapa das mortes por cólera em Broad Street", publicado em "Mode of Communication — Cholera" (Snow, 1855) Wikimedia
A fita-cola é utilizada para orientar algumas das recomendações de distanciamento físico. @tape_measures
No Parque das Nações, foram desenhados vários círculos para facilitar o convívio em segurança. Nuno Ferreira Santos
A plataforma colaborativa Stay Sane Stay Safe foi promovida por três designers holandeses e compila milhares de posters sobre as medidas de prevenção, que podem ser descarregados gratuitamente. Noy Galron
Fotogaleria
"Diagrama de causas de mortalidade no exército a Este", publicado em "Notes on matters affecting the health, efficiency and hospital administration of the British army" (Nightingale, 1958) Wikimedia

A forma de comunicar visualmente poderá ter mesmo salvado vidas, incluindo em outros surtos mais recentes, como o de zika no Brasil ou de ébola em África. Existem ideias inovadoras e eficazes, como instalações publicitárias que atraem e eliminam mosquitos ou pinturas exuberantes em murais.

Na pandemia de covid-19, os exemplos são simples, como utilizar fita-cola para orientar a circulação, marcar círculos em jardins para garantir o distanciamento físico ou transformar orientações de saúde em desenhos infantis. A curva achatada partilhada desde Março mostra que o distanciamento físico, entre outras medidas, reduz o número de casos que necessitam de cuidados de saúde e evita uma sobrecarga dos serviços de saúde. Milhares de vidas foram salvas ao promover este distanciamento e alguns estudos já reportam resultados interessantes.

Parecem intervenções banais, mas os elementos gráficos permitem que todos compreendam a mensagem, independentemente dos estudos ou idioma. Já reparou que nos lembramos mais facilmente de um desenho que vimos há uma semana do que o texto que lemos ontem? Ao apelar ao lado emocional, as imagens podem inspirar-nos a adoptar comportamentos que nos protegem. Não é apenas algo que agrada à vista, mas também útil e memorizável. Todas estas vantagens permitem esbater as desigualdades que o novo coronavírus agravou.

O design foi sempre utilizado pelas companhias multinacionais para estimular o consumo. Mas o design gráfico é muito mais que isso quando colocado ao serviço do bem comum: pode resolver problemas da sociedade e aumentar a qualidade de vida. Também as instituições de saúde deveriam fazer uso destas armas para melhorar a saúde de todos.

Quão fantástico seria se designers, profissionais de saúde e cidadãos trabalhassem juntos para melhorar a nossa vida? A pandemia de covid-19 fechou-nos em casa e colocou-nos gráficos à frente. Quando saímos passámos a ter linhas nos nossos pés. Cada autocolante ou gráfico foi pensado com o propósito de facilitar a vida numa sociedade em adaptação. Da próxima vez que for às compras lembre-se: a linha no chão à nossa frente salva vidas.

Sugerir correcção