Subdirectora-geral do Património desmente pressões e censura à direcção do Museu do Chiado

Fátima Marques Pereira, cuja saída do cargo foi já anunciada pelo Ministério da Cultura, acusa a directora do Museu do Chiado, Emília Ferreira, de ter enviado à tutela um relatório com informações “falsas” e “difamatórias”.

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Fátima Marques Pereira quando ainda dirigia o Arquipélago - Centro de Arte Contemporânea, nos Açores Rui Soares

Fátima Marques Pereira, subdirectora-geral do Património Cultural, desmentiu esta sexta-feira, num comunicado enviado à agência Lusa, que tenha exercido pressões sobre a direcção do Museu Nacional de Arte Contemporânea (MNAC), no Chiado, ou censurado textos para uma exposição da instituição. De saída das funções que ocupa há apenas oito meses — segundo o Ministério da Cultura, a seu pedido e por “motivos pessoais”, como o PÚBLICO noticiou na quinta-feira —, Fátima Marques Pereira vai deixar o cargo pouco mais de um mês após a tutela ter recebido um relatório relativo à abertura da exposição Dissonâncias, no MNAC, no qual se denunciam tentativas de ingerência nas competências da direcção e no conteúdo de textos curatoriais da exposição, violando o “espírito de autonomia dos museus”.

“Venho desmentir categoricamente as afirmações nele produzidas (...), que são falsas, já que nunca pressionei a Dr.ª Emília Ferreira a alterar os textos das curadoras”, escreve a subdirectora-geral, acrescentando: “Mas não são apenas falsas, são ainda difamatórias, pois imputam à minha pessoa atitudes censórias que sempre repudiei.”

O relatório interno, a que a agência Lusa teve acesso, foi enviado pela directora do museu, Emília Ferreira, ao gabinete da ministra da Cultura, Graça Fonseca, e reúne as diligências realizadas pela responsável junto da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), entre Maio e Agosto, para pedir a resolução urgente dos problemas que impediam a abertura da mostra, adiada várias vezes. Dissonâncias esteve, aliás, praticamente pronta para abrir durante dois meses à espera de respostas da tutela e, como o PÚBLICO avançou a 25 de Agosto, a direcção do Chiado chegou mesmo a considerar que não seria inaugurada no seu formato original. 

“A divulgação desse documento interno produzido pela Dr.ª Emília Ferreira é grave, porque extravasa o âmbito da DGPC, mas é sobretudo grave pelas afirmações produzidas, atentatórias do meu bom nome”, afirma a subdirectora-geral no comunicado enviado esta sexta-feira à Lusa, que no dia anterior tentara contactar diversas vezes Fátima Marques Pereira sem obter resposta.

Dissonâncias acabou por abrir ao público a 30 de Setembro, com 85 obras de 45 artistas, dando a conhecer uma selecção das aquisições e, sobretudo, de importantes doações de artistas e mecenas para o MNAC nos últimos dez anos.

Ainda sobre o conteúdo do relatório, Fátima Marques Pereira diz: “Que a Dr.ª Emília Ferreira não goste da minha pessoa está no seu pleno direito, que me ataque com falsos pretextos de censura, já se enquadra no âmbito da difamação.”

A exposição em causa foi inicialmente adiada devido à pandemia, mas o museu enfrentou vários problemas técnicos, entre os quais a necessidade de substituição de projectores antigos que deixaram de funcionar, impedindo a iluminação das obras, uma situação “estrutural” que a directora refere várias vezes no relatório que entregou à tutela.

Nesse documento, Emília Ferreira descreve os contactos realizados com a subdirectora-geral no sentido de viabilizar a abertura da exposição, e posteriormente dos pedidos daquela responsável para lhe serem enviados documentos sobre custos de adjudicações, e os textos das curadoras da mostra, Adelaide Ginga e Emília Tavares, e da própria directora do museu.

Emília Ferreira conta no relatório que estranhou este pedido dos textos curatoriais, algo que, “em 20 anos de função pública, nunca” lhe tinha acontecido, e que, escreve, perante a lei do regime jurídico de autonomia dos museus, “constitui uma clara ingerência na actividade do museu e nas competências da sua direcção”.

“Para que fique claro, nunca pressionei a Dr.ª Emília Ferreira a alterar os textos curatoriais, na reunião de 22 de Junho, referida pela própria, onde não estávamos sozinhas”. E acrescenta que “nunca” violou a lei da autonomia de gestão dos museus, “como nesse documento é dito falsamente”, assim como não teve “qualquer influência nas tomadas de decisão” da directora do MNAC.

Fátima Marques Pereira considera ainda que teve uma actuação, neste processo, “no sentido de viabilizar a concretização da exposição Dissonâncias, de tal forma que, não obstante as múltiplas dificuldades”, esta abriu ao público a 30 de Setembro, tendo ela própria, recorda, estado presente na inauguração juntamente com a directora do museu.

“O meu currículo e todas as pessoas com as quais tenho colaborado, artistas e curadores, são prova suficiente da minha posição em favor da liberdade de expressão, pelo que não poderei aceitar que o meu bom nome possa estar em causa, sob pena de ter de agir na sua defesa”, finaliza a subdirectora-geral da DGPC.

A directora do MNAC insiste ainda, no relatório, que, numa reunião com Fátima Marques Pereira, o teor não se centrou nas questões orçamentais, mas nos textos das curadoras, tendo esta chegado a comentar que os considerava uma “falha grave de falta de cultura institucional”, podendo, caso fossem tornados públicos, ser “muito graves” para a directora do museu, sobretudo por ter manifestado a intenção de concorrer à futura direcção, pondo “em causa a presente Direcção-Geral do Património Cultural e a ministra” da Cultura.

Emília Ferreira relata ter negado que os textos em causa tivessem essa intenção, “já que a exposição estava pensada há quase dois anos, portanto, muito antes desta Direcção-Geral”.

Rejeitando que a direcção do museu tivesse qualquer “agenda política”, a directora justifica, no documento, que os textos da mostra tinham um carácter de “balanço histórico” e sublinhavam “a dívida do MNAC para com os doadores, entre os quais se encontram vários artistas” e seus herdeiros, nomeadamente Arnaldo Fonseca e Jorge Silva Araújo, no domínio da fotografia portuguesa, e que, destaca, entre outros, permitiram “colmatar” várias “ausências” e “lacunas” no acervo da colecção.

Referindo-se às novas vanguardas na segunda metade do século XX e século XXI, a curadoria da exposição assinala ainda que “a representatividade deste período continua a apresentar várias e incontáveis lacunas na colecção do MNAC, que reflectem a ausência de meios para a concretização de uma política coerente de aquisições, tanto mais que esta é a instituição nacional com a missão pública, há mais de um século, de garantir a representatividade da arte portuguesa e o seu legado”.

“Esta enorme lacuna tem sido, de forma errática, minimizada através da generosidade de artistas e coleccionadores com a doação de obras”, lê-se ainda num dos textos curatoriais de Dissonâncias.

Noutras comunicações à DGPC, que sublinhou no relatório, já em Agosto, sem ver resolvidos os problemas de adjudicações para obras no museu, em particular na iluminação, Emília Ferreira disse-se “desesperada com o abandono a que este museu foi votado”, aludiu a “legítimas reclamações dos visitantes” e apelou à intervenção urgente da DGPC para evitar o “descrédito” da entidade, de não conseguir abrir a exposição, argumentando, por exemplo: “Sem nada para oferecer [ao público] não conseguiremos mesmo receitas.”

O mesmo documento refere ainda que só depois do sucessivo adiamento ter sido noticiado pelo jornal PÚBLICO, e de a DGPC ter respondido a várias questões colocadas pela agência Lusa sobre a situação, é que obteve, “por parte da subdirectora, a confirmação de que iria haver forma de financiar a exposição”.

Na altura, e na sequência de questões enviadas à DGPC pela agência Lusa sobre a montagem da exposição, que não chegou a abrir nas datas previamente anunciadas, este organismo do Ministério da Cultura respondeu que o adiamento se deveu à pandemia de covid-19, que obrigou ao encerramento de espaços culturais entre 14 de Março e 18 de Maio. “Devido à situação de pandemia e à necessidade de cumprimento do plano de contingência adoptado pela DGPC, ao nível da segurança e saúde públicas, tornou-se necessário o adiamento da inauguração da exposição por três meses”, justificou a entidade.

A DGPC acrescentava que a exposição Dissonâncias teve a sua “inauguração adiada para 30 de Setembro por acordo entre a directora do museu e a DGPC, tendo em conta a necessidade de ajustar a programação do MNAC de 2020, face ao prolongamento de exposições anteriores em virtude da pandemia, e à necessidade de realizar os procedimentos de contratação pública essenciais à sua concretização, os quais estão neste momento adjudicados aos respectivos fornecedores”.

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