Tribunal de Contas: de como a primeira impressão se cola à pele

Costa e Marcelo já andam há demasiado tempo na política para saberem que “não há uma segunda oportunidade para causar uma boa primeira impressão”.

O Tribunal de Contas (TdC) constitui uma ordem jurisdicional autónoma que, nos termos do art. 215.º da CRP, é definido como “o órgão supremo de fiscalização da legalidade das despesas públicas e de julgamento das contas que a lei mandar submeter-lhe”, competindo-lhe, nomeadamente, dar parecer sobre a Conta Geral do Estado, incluindo a da segurança social; sobre as contas das Regiões Autónomas; efectivar a responsabilidade por infracções financeiras. Nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, o mandato do seu Presidente é de quatro anos, sem prejuízo do disposto no art. 133.º, al. m), que se refere à competência do PR em nomear este mesmo Presidente e o PGR. Ora, é por de mais evidente que a Lei Fundamental admite uma renovação do mandato, pelo que a actual decisão e a anterior quanto a Joana Marques Vidal são totalmente políticas, o que, em termos democráticos, nada tendo de ilegal, responsabiliza apenas quem nela participa: o Governo que propõe e o PR que nomeia.

Este ponto do debate parece, agora, já estar claro, depois da fumaça inicial. Do mesmo passo, não se compreende, em meu juízo, como é que o Presidente do TdC, órgão que tem especiais responsabilidades na fiscalização do modo como se gastam dinheiros públicos, não é, como nos demais tribunais superiores, eleito pelos seus pares, o que não deixaria dúvidas sobre a sua total independência e imparcialidade. Este sim, a juntar ao modo como o PGR é nomeado (sobre o que já aqui me pronunciei em artigos de 9 e 28/1/2018), mereceriam, entre outros eventuais assuntos, um projecto de revisão constitucional.

É certo que o Presidente só em caso de empate é chamado a votar as decisões, tendo, sobretudo, tarefas administrativas, de coordenação e representativas. Todavia, como sabemos e a realidade vem-nos dando indícios disso, mesmo o poder judicial – como qualquer outro – pode ser alvo de tentações de corrupção e, por isso, para além da enorme confiança que tenho nele, também é exacto que, enquanto seres humanos como qualquer um de nós, o sistema deve criar todas as impossibilidades fácticas admitidas num Estado de Direito para que tais “tentações” não ocorram. Manter aqui – como no PGR – uma ligação ao Governo e ao PR não garante a total independência de um tribunal ou da “cabeça” que, entre outras funções, promove a acção penal.

E, nestas coisas, não basta ser. Nessa toada, também me parece indubitável que o PS tem, pelo menos desde o “processo Casa Pia”, um problema de fundo com a justiça e os seus principais intervenientes. Digo-o com mágoa, por me identificar com os valores da esquerda republicana e por esperar dela especiais responsabilidades neste domínio. Mas certo é que, nas entrelinhas, nas nomeações ou não reconduções, fica sempre a impressão – pois certezas nunca pode haver, dado que estas coisas não se fazem ou dizem às claras – que o PS não aceita que as autoridades judiciárias cumpram as suas funções, independentemente de um cartão de militante ou de simpatias políticas. Parece que o lema de Jorge Coelho de que “quem se mete com o PS leva” é particularmente aplicável à justiça. Trata-se de um sinal de alarme, não apenas por se tratar de um partido que tem hoje, teve no passado e terá no futuro responsabilidades cimeiras na condução do país, mas sobretudo por ajudar aos populismos, aos discursos anti-sistema e, com isso, à debilitação do rule of law.

O conteúdo do discurso de ontem do PR, auto-justificativo, na tomada de posse do novo Presidente do TdC, demonstra à saciedade o mal-estar de Marcelo. Não é verdade que a revisão constitucional de 1997 tenha impedido a renovação deste e de outros cargos, assim como, se havia um entendimento entre Belém e São Bento a este propósito, porque não foi dito alto e bom som quando a anterior PGR não foi tristemente reconduzida? Como em qualquer jogo, também na política as regras devem ser conhecidas com antecedência e com toda a transparência. Daí que o exemplo dado pelo PR no seu discurso de ontem seja infeliz: não duvido que Lucília Gago tenha toda a convicção na luta contra o crime, doa a quem doer, mas é exacto que o tal princípio acordado entre Governo e PR só agora foi revelado – ou criado? –, quando os decibéis da opinião pública foram aumentando e em vésperas de um mais que esperado anúncio da recandidatura de Marcelo.

As aparências são isso mesmo – possíveis ilusões que podem ou não corresponder à realidade. Mas Costa e Marcelo já andam há demasiado tempo na política para saberem que “não há uma segunda oportunidade para causar uma boa primeira impressão”.

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