Passada a euforia

O que aconteceu este ano deve levar-nos a refletir sobre alguns tópicos da política de ensino superior, para que este seja o início da mudança.

Passada a euforia em torno dos resultados do concurso nacional de acesso — que trouxe mais candidatos jovens, mais vagas e mais estudantes colocados, em todas as instituições do ensino superior e em todo o país, num número muito superior ao esperado —, convém refletir sobre o que aconteceu.

Antes de tudo, convém lembrar que esta afluência resultou de um aumento muito significativo do número de alunos que este ano concluíram o ensino secundário. Estamos perante um efeito não esperado da pandemia, isto é, trata-se de um epifenómeno que se extinguirá já no próximo ano? Ou, pelo contrário, estamos perante uma mudança estrutural?

Faço esta pergunta porque há décadas que os elevados níveis de insucesso no 12.º ano, na ordem dos 25%, são um bloqueio estrutural à entrada de mais jovens no ensino superior. Mas está instalado um conformismo impeditivo de olhar para este insucesso como um problema.

Para responder ao défice de qualificações da população empregada e às necessidades de formação ao longo da vida, bem como à necessidade de desbloquear o prosseguimento de estudos dos alunos do ensino profissional, têm sido tomadas medidas legislativas de criação de vagas e de instituição de modalidades especiais de acesso ao ensino superior. Porém, no que respeita aos jovens das vias cientifico-humanísticas, a política de ensino superior resumiu-se, na última década, a medidas de gestão de vagas orientadas pela preocupação de uma redistribuição dos estudantes, proporcionando estímulos financeiros para que estes procurem instituições do interior ou do politécnico.

A estagnação da procura de ensino superior por parte dos jovens, decorrente do insucesso no secundário, não tem sido encarada como uma variável na equação, mas antes um parâmetro com o qual nos devemos conformar. A consequência foi o abandono à sua sorte de milhares de jovens, com secundário incompleto, que continuam a entrar no mercado de trabalho, alimentando os défices de qualificação da população empregada.

Este ano, por razões inesperadas, provou-se que há uma procura potencial maior do que o suposto. Não existem vagas, cursos e instituições a mais, têm existido alunos a menos. O que aconteceu este ano deve levar-nos a refletir sobre alguns tópicos da política de ensino superior, para que este seja o início da mudança.

Em primeiro lugar, a relação entre o ensino superior e o secundário, no que respeita ao acesso, mas também aos conteúdos programáticos e mecanismos de avaliação. Um ensino secundário subordinado quase só às lógicas do acesso ao ensino superior, à preparação para os exames e à posição das escolas nos rankings empobrece as aprendizagens e gera elevados níveis de insucesso.

Para mudar esta relação perniciosa entre secundário e superior é necessário começar por compreender as expectativas e as motivações dos jovens. Neste quadro, uma maior aproximação das instituições de ensino superior às escolas secundárias da sua área de influência pode produzir o conhecimento que nos falta.

Em segundo lugar, a importância das políticas de proximidade, isto é, de alargamento, territorialização e diversificação da oferta formativa de ensino superior. Tornar a rede de instituição mais capilar, sobretudo na área metropolitana de Lisboa, fazendo chegar ofertas de ensino superior aos locais onde estão as pessoas, com diversidade e sem degradação da qualidade e do nível de exigência, é um desafio político decisivo para enfrentar o défice de qualificação dos portugueses.

Finalmente, o modelo de financiamento das instituições públicas de ensino superior. Há mais de dez anos que está suspenso o modelo de financiamento das universidades e politécnicos. As dotações públicas de cada universidade dependem do histórico e não do número de alunos que recebem ou de outras variáveis da fórmula. Os contratos de legislatura, assinados pelas instituições do ensino superior com o Governo em 2016 e 2019, geraram um quadro de estabilidade e previsibilidade do financiamento público.

Mas se tivermos a ambição de fazer mais e melhor é necessário criar condições e incentivos à modernização das ofertas formativas, ao desenvolvimento de projetos pedagógicos inovadores, à atração de novos alunos e à promoção de ganhos de eficiência.

Para que a mudança que ocorreu este ano seja uma oportunidade não chega a euforia, é necessário tirar lições do que aconteceu e do que nos tem bloqueado.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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