Sé de Lisboa: Arqueólogos portugueses contestam argumentos de insegurança da DGPC

“A eventual desmontagem e remontagem noutro local de parte das estruturas encontradas, também sugerida pelo arquitecto João Carlos Santos, afigura-se completamente inaceitável, por implicar a sua descontextualização, sendo assim contrária às mais elementares boas práticas de conservação e restauro de vestígios arqueológicos”, defende a associação, em comunicado.

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Rui Gaudencio

A Associação dos Arqueólogos Portugueses (AAP), em comunicado divulgado esta quarta-feira sobre as escavações na Sé de Lisboa, afirma que a conservação dos vestígios arqueológicos não coloca qualquer problema de segurança, contrariando declarações do sub-director do Património Cultural João Carlos Santos.

O comunicado da AAP foi emitido depois de uma visita do seu presidente, José Eduardo Arnaud, ao estaleiro de obras, na passada sexta-feira. “Ao contrário do que havia sido afirmado pelo arquitecto João Carlos Santos, a conservação 'in situ’ das estruturas encontradas não implica qualquer problema de segurança, de acordo com informação prestada no local pelo engenheiro Victor Oliveira, director de obra da Ferrovial [empresa responsável pela obra no claustro], [e] pelo engenheiro Joaquim Ferraz, responsável pela Segurança da Pengest, empresa que fiscaliza a obra”, lê-se no comunicado

A AAP realça o “conjunto de excepcional valor arqueológico, histórico e patrimonial, constituído por pelo menos nove compartimentos em torno de um pátio, que se encontram em muito bom estado, conservando ainda o revestimento estucado original, pelo que deverão ser salvaguardados, conservados e valorizados ‘in situ' [no local onde foram encontrados]”.

A Associação é categórica: “A eventual desmontagem e remontagem noutro local de parte das estruturas encontradas, também sugerida pelo arquitecto João Carlos Santos, afigura-se completamente inaceitável, por implicar a sua descontextualização, sendo assim contrária às mais elementares boas práticas de conservação e restauro de vestígios arqueológicos”.

A AAP acusa o responsável de uma “visão restritiva” ao considerar que “os vestígios encontrados podiam ser removidos à face da lei, por não estarem abrangidos pela classificação de todo o conjunto monumental da Sé de Lisboa como Monumento Nacional”.

Para a associação, tal concepção “não se afigura de todo aceitável, à luz das convenções internacionais e das boas práticas de conservação do património cultural, pois os monumentos devem ser considerados na sua globalidade, incluindo os edifícios pré-existentes”.

A associação acusa a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) de ter “orientado mal” desde o início do projecto, e responsabiliza-a pelos “inevitáveis atrasos da execução e derrapagens orçamentais”. Para a APP, a DGPC “nunca deveria ter aprovado” o chamado projecto de valorização do claustro da Sé de Lisboa, dada “a complexidade deste, sem a escavação arqueológica integral das áreas a afectar”.

A associação recorda que “há muito que os historiadores sabiam que a Catedral de Lisboa havia sido construída sobre a antiga mesquita, pelo que era expectável que se encontrassem alguns vestígios da mesma, subjacentes ao claustro”.

A AAP considera que a actual questão de manutenção dos vestígios islâmicos não é “um problema técnico ou de segurança, para o qual a engenharia não tenha solução, mas apenas de um problema de vontade política, tanto mais que não será muito difícil obter o necessário reforço financeiro”, e apela à procura de apoios pecuniários privados, nomeadamente uma fundação.

“A AAP, na sua qualidade de mais antiga instituição dedicada ao Património Arquitectónico e Arqueológico do país, apela às entidades oficiais responsáveis pela gestão do património cultural e ao Governo da República para que tenham a coragem de suspender de imediato a execução do projecto de instalação do núcleo arqueológico do Claustro da Sé de Lisboa, e de o mandar reformular por completo, de modo a contemplar a salvaguarda, conservação e valorização integral deste conjunto patrimonial”.

A associação cita o investigador Hermenegildo Fernandes, do Centro de História da Universidade de Lisboa, segundo o qual a destruição dos vestígios “seria um crime patrimonial impensável”.

A descoberta, nas obras de requalificação e restauro do claustro da Sé de Lisboa, de vestígios da antiga mesquita almorávida, do século XII, e a sua exumação (retirada), tem suscitado a crítica de vários sectores científicos e do Sindicato dos Trabalhadores de Arqueologia (STArq), assim como pedidos de esclarecimento à ministra da Cultura, Graça Fonseca, por parte dos grupos parlamentares.

O complexo da antiga mesquita ocupava todo o quarteirão da actual Sé, com banhos, escolas e a mesquita dos mortos, entre outras estruturas, segundo uma das investigadoras e directoras científicas do trabalho arqueológico, Alexandra Gaspar.

Entre os vestígios descobertos, que a arqueóloga apontou como “únicos” nos contextos ibérico e marroquino, encontra-se a base do minarete e o compartimento do vestiário. “A mesquita encontrada só tem paralelo na Argélia”, realçou Alexandra Gaspar, durante uma visita de imprensa ao local, que defendeu a manutenção dos vestígios, num parecer técnico que foi contrariado por um despacho hierárquico superior.

No passado fim-de-semana, os professores universitários da área da arqueologia, entre os quais Jorge de Alarcão, da Universidade de Coimbra, garantiram que os vestígios arqueológicos encontrados na Sé de Lisboa “são inequívocos quanto à excepcionalidade científica e patrimonial dos achados”. Para os professores, “é impensável que um projecto de valorização de um monumento nacional, como é a Sé de Lisboa, destrua as suas preexistências”.

A AAP afirma que, “logo que teve conhecimento de que as estruturas pertencentes à antiga mesquita, encontradas ao fim de mais de 25 anos de pesquisas (...), estavam em risco de ser destruídas”, de imediato iniciou diligências para alertar a tutela e, a 24 de Setembro último, enviou uma carta ao director-geral do Património Cultural, Bernardo Alabaça, “no sentido de mandar proceder à suspensão imediata dos trabalhos em curso, e de solicitar ao arquitecto responsável pelo projecto uma reformulação urgente do mesmo, de modo a garantir a salvaguarda integral das ruínas da antiga mesquita”.

Sobre esta questão, foi convocada a Secção do Património Arquitectónico e Arqueológico (SPAA), do Conselho Nacional de Cultura, para avaliar a situação, e o director-geral do Património Cultural, Bernardo Alabaça, disse à Lusa que “fosse qual fosse” o parecer, este seria acatado.

A DGPC anunciou esta quarta-feira ter pedido um “estudo de formas alternativas de garantir a estabilidade das estruturas a edificar”, na Sé de Lisboa, “no sentido de minimizar a afectação dos vestígios arqueológicos” encontrados.

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