Gonçalo M. Tavares abre Dicionário de Artistas nas páginas do CCB com Francis Alÿs

Artista multidisciplinar belga atravessou continentes e somou reflexões do Iraque e do Afeganistão, do México, do Peru e da Turquia. “Tens cidade nos pés”, diz dele o escritor português.

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Francis Alÿs apresentou em 2016 a exposição Não Te Faltará a Distância na Igreja de São Cristóvão, em Lisboa DR

O escritor Gonçalo M. Tavares inicia esta quarta-feira a publicação semanal de uma série de textos sobre artistas contemporâneos, a reunir num Dicionário de Artistas, que abre com “Sapatos”, sobre o artista multidisciplinar belga Francis Alÿs, nas plataformas do Centro Cultural de Belém (CCB).

“Quando calçamos os sapatos o mundo perde altura, muda (...). Os sapatos levam atrás o caminho”, escreve Gonçalo M. Tavares no texto dedicado ao artista de 61 anos, nascido em Antuérpia, a trabalhar actualmente no México, que conjuga expressão artística, arquitectura e prática social, na sua expressão, e que em 2016 expôs em Lisboa, na Igreja de São Cristóvão, associando-se à recuperação do templo.

“Sapatos” e o mundo percorrido por Alÿs, na preocupação inerente à sua expressão, entre a política e a poética, entre a impotência de uma só voz e a possibilidade da acção individual, abrem assim o processo que todas as quartas-feiras vai ter lugar nas plataformas digitais do CCB, com a publicação de um texto de Gonçalo M. Tavares, Prémio Portugal Telecom (2007 e 2011) e Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (2011).

Afirma o escritor na página do CCB dedicada à iniciativa: “A arte contemporânea como ponto de partida; a literatura pega nela e vai indo sem olhar um segundo para trás; calcula-se o vago ponto zero – o nome de um artista, uma obra –, mas tudo o que vem a seguir existe nesse texto que começa a pensar pela sua própria cabeça”.

Gonçalo M. Tavares prossegue: “Basta um indício visual para a linguagem se pôr a caminho e avançar por veredas estreitas e desvios a pique, subidas e descidas”. “Interessa-me isto: a arte que se vê como modo de emitir por trás de si uma linguagem que é necessário extrair do solo da própria obra à força. O olhar de quem escreve faz isso: o que vê transforma-se em palavra, mas há neste começo, claro – as obras de arte contemporâneas –, uma potência que conduz o texto por dentro. Sem este começo – a arte contemporânea – não haveria estes textos”, garante o autor de Jerusalém e A Máquina de Joseph Walser.

Para Gonçalo M. Tavares, este “Dicionário de Artistas, este museu, parte de um pormenor, detalhe ínfimo ou centro centralíssimo, da obra de um artista, nunca da biografia, e daí o texto vai para outro local qualquer”. “Como um animal que tem fome parte do ninho para um ponto onde pressente o alimento, assim parte o texto à sua vida”, acrescenta o escritor, esclarecendo que não é “nada de didáctico ou explicativo”. “Os textos deste Dicionário são seres autónomos que saem à rua livres e bem sozinhos depois da meia-noite”, remata.

Sobre a arte de Alÿs, Tavares escreve: “Há uma inclinação do dorso das costas que corresponde à postura atenta de um investigador, e uma outra, que parece ganhar ânimo com o tambor distante ou com a proximidade do silêncio, que corresponde à postura do esqueleto de um poeta ou de um príncipe. Duas formas de relacionar a geometria e a anatomia (portanto). Ou te curvas, ou não te curvas”.

Para o artista que atravessou continentes e somou reflexões do Iraque e do Afeganistão, do México e da Turquia, que levou ao Peru a demonstração do muito e quase nada “Quando a fé move montanhas”, e que continua a testemunhar brincadeiras de crianças, dos pátios de escola em Paris aos campos de refugiados no Iraque, e à Ciudad Juárez, escreve Tavares: “Os sapatos levam atrás o caminho. Como se o caminho não fosse um elemento indiferente, mas participasse na perseguição, na fuga, na batalha. O espaço tem coisas, não é um mapa, não é um plano estúpido que só recebe; o espaço é uma forma de vigilância, é um volume, uma coisa orgânica. Tens cidade nos pés, alguém podia dizer.”

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