Uma vã cegueira moral

Numa sociedade que se queira verdadeiramente livre e democrática, a objecção de consciência às questões de cidadania não pode ter lugar.

Foto
Rui Gaudencio

A polémica disciplina de cidadania volta a estar em cima da mesa. Desta vez é Nuno Melo quem reacende a controvérsia, com o lançamento de uma petição que, segundo o próprio, pretende retirar “o que é político” da disciplina. Num pequeno debate com Helena Ferro Gouveia, foi mais que evidente o discurso baseado exclusivamente em argumentos generalistas e escassos de exemplos práticos. Nuno Melo afirmou, talvez por ignorância ou obstinação, que parece ser só “gente de esquerda” a estar na linha da frente dos conteúdos da disciplina, reduzindo-os apenas às questões LGBT e à igualdade de género. Não fosse a colega de debate a assumir-se de direita, católica e praticante, e o eurodeputado confiaria plenamente na teoria que criara.

Numa sociedade que se queira verdadeiramente livre e democrática, a objecção de consciência às questões de cidadania não pode ter lugar. Embora se apresente como uma mera liberdade de escolha, a chamada objecção de consciência, neste caso concreto, descura que a cidadania, na sua multiplicidade dimensional, não é um conceito disjuntivo do ponto de vista prático. Isto significa que o seu exercício é assente em formas plurais, porém nunca opostas nem alternativas nos seus objectivos, por alegada diferença de pensamento, em relação às restantes. Caso contrário, não seria possível construir uma sociedade participativa e respeitadora do bem individual e colectivo. Portanto, a discussão do tema não pode ser cega à multiculturalidade social em que estamos inseridos sob pena de se tornar infrutífero debater.

Não há dúvida de que permanece um conflito entre a moral e a ética. Os defensores da objecção de consciência aos temas de cidadania leccionados argumentam que o programa da disciplina assenta em directrizes contrárias à moral religiosa que perfilham. Apenas se focam em dois dos 17 temas abordados na disciplina, o que torna o debate constantemente redutor, dado que há um problema ideológico que não é ultrapassado. Ora, cumpre-nos questionar: até que ponto pode a moral (religiosa) reger os deveres morais de cidadania? O carácter cultural da moral, imprescindível para a existência de normas na vivência em sociedades multiculturais, pode entrar em conflito com o carácter universal e imparcial da ética. Se a primeira, no seu sentido lato, constitui a prescrição do modo de actuar dos indivíduos, regulando a sua conduta, a segunda questiona a sua validade e impõe uma moralidade justificada racionalmente. Assim, todo o comportamento eticamente orientado parte da existência de uma consciência moral, que tem por base a interacção social a que o indivíduo está exposto.

Kant considerava que uma norma moral só poderia ter validade de acção se fosse dotada de universalidade e se não considerasse o ser humano como um simples meio. A universalidade proposta na ética kantiana pretende levar-nos a questionar se uma acção seria passível de aplicação generalizada sem causar dano. Uma resposta afirmativa levaria a considerar a acção como sendo boa. A segunda fórmula proposta diz ser imperativo que nos respeitemos a nós e aos outros seres humanos como fins em si mesmos, dotados de autonomia e capazes de escolher livremente os seus objectivos. Assim, importa concluir: numa sociedade multicultural, as normas morais de cariz religioso não podem nem devem ser directrizes únicas para o exercício dos deveres morais de cidadania, uma vez que nem todas são dotadas de universalidade e nem sempre respeitam o outro como um fim em si mesmo.

Temas como a homossexualidade, a igualdade de género ou a autodeterminação de género nem sempre têm, do ponto de vista religioso, uma concepção moral universal que reconheça o ser humano como um fim em si mesmo, tal como propõe Kant. O filósofo Kymlica dizia que é preciso encarar o cidadão como um “membro integral e igual da sociedade” e, por isso, pode-se daqui inferir que o exercício dos deveres de cidadania não pode ser cego perante a promoção da igualdade na diferença. Daí a pertinência dos conteúdos a que os objectores de consciência se opõem. Mais ainda, importaria questionar: por que obrigações morais se deveriam, então, reger os ateus já que, nesta perspectiva, seriam com certeza objectores de consciência dos deveres de cidadania baseados em crenças religiosas? Ou então, do ponto de vista da aceitação da diversidade religiosa, seria possível permitir a um fundamentalista islâmico a objecção de consciência aos deveres de tolerância e respeito para com um cristão?

Não significa isto que não existam deveres morais de influência religiosa que se possam considerar de comum serventia como deveres de cidadania. Significa, isso sim, que os deveres morais de cidadania devem ser transversais e devem superar a influência dos costumes, crenças ou hábitos sociais. Assim, a objecção de consciência ao seu cumprimento é imoral (por ser contrária aos deveres morais de cidadania) e não tem justificação ética porque impõe, alternativamente, a adopção de deveres morais que correm o risco de se opor à universalidade e imparcialidade que lhes devem ser características.

Um Estado democrático não pode prescindir de incutir nos mais jovens o seu papel enquanto actores de cidadania. Se o fizer no presente, está a falhar no futuro por falta de comparência, caindo no erro de comprometer a preservação e a estabilidade da democracia. Mais ainda, não é necessariamente mau que os filhos confrontem os pais com valores diferentes daqueles que assumem como correctos. A evolução das sociedades ao longo dos tempos partiu sempre de um confronto de ideias, baseadas em valores e concepções culturais próprias. Foi através do debate em torno delas que se colmataram as falhas da sociedade que mereciam um entendimento diferente. A isto, como dizia acima, chama-se agir com consciência moral. E se a escola assumir o importante papel de a incutir, não só colabora com os pais na educação dos filhos como também os ensina a perceber que o mundo é mais do que o quadrado à sua volta ou o contexto familiar em que vivem.

Sugerir correcção