Vítor Caldeira: um herói improvável

A ideia que o governo possa querer alguém “amigo” a presidir ao TdC dificulta muito a escolha do novo presidente. Não é qualquer um que está para se sujeitar a esse rótulo.

O presidente do Tribunal de Contas (TdC), informado na véspera, ao telefone, pelo primeiro-ministro, que não seria reconduzido, transformou-se num herói improvável. Ao contrário do seu antecessor, Guilherme d’Oliveira Martins, que foi três vezes ministro nos governos de Guterres e saiu da bancada parlamentar do partido socialista para presidir ao TdC, Vítor Caldeira, não tem passado político-partidário. Foi sempre um jurista discreto, de perfil técnico e com carreira na administração pública, primeiro na Inspecção Geral de Finanças, de 1989 a 2000, e depois no Tribunal de Contas Europeu, de 2000 a 2018. Se fosse pessoa de afrontar, perdendo o sentido institucional do cargo, não lhe teriam faltado oportunidades para responder às muitas reacções destemperadas de responsáveis políticos descontentes com as auditorias do TdC. Lembro as seguintes: “conjunto de banalidades” (ministro Manuel Heitor, sobre o financiamento do ensino superior), “tecnicamente incompetente”, “de baixíssima qualidade”, “falso” e “lamentável” (presidente da CML Fernando Medina, sobre a venda de património da segurança social), “mentecaptos” e “tralha toda da maluqueira nacional” (deputado Ascenso Simões, sobre a mesma auditoria) e “parcial e enviesado” (ex-ministro Álvaro Santos Pereira, sobre as contrapartidas na compra de 12 aviões).

O presidente do TdC é nomeado pelo Presidente da República, sob proposta do governo, para um mandato de 4 anos renovável. A lei não lhe atribui praticamente poderes jurisdicionais nem possibilidade real de interferir no sentido das decisões do tribunal. Tem funções administrativas e de representação, preside às sessões, mas só vota certas decisões quando há empate e nem sequer tem direito de voto na aprovação dos relatórios das auditorias. Para além disso, os juízes do TdC são independentes e não se vergariam a quaisquer instruções de comissários políticos. Portanto, se o “despedimento” de Vítor Caldeira foi um castigo pela rebeldia do tribunal, apanhou por tabela, por decisões em que não podia – nem devia – interferir.

Não é apropriado, para mim, especular sobre a intenção do governo de não reconduzir o presidente do TdC. Interessa-me mais analisar o efeito negativo dessa decisão, no contexto de percepção pública que se criou. Por um lado, a ideia que o governo possa querer alguém “amigo” a presidir ao TdC dificulta muito a escolha do novo presidente. Não é qualquer um que está para se sujeitar a esse rótulo. Por outro lado, se for nomeado alguém com ligação à vida político-partidária, por mínima que seja, será inevitável que isso suscite interrogações, injustas e perigosas, sobre a independência das futuras decisões do TdC. Ouso pois sugerir uma solução para resolver o problema, dentro do actual quadro constitucional, respeitando a historia do TdC e salvaguardando aquilo que é mais essencial: a sua independência.

Para além do actual, a seguir a 1974, o TdC teve quatro presidentes, dois com ligações político-partidárias – Guilherme d’Oliveira Martins e Sousa Franco, que saiu do presidente do TdC para ministro das Finanças de Guterres – e dois provenientes das magistraturas – Alfredo José de Sousa e João Pinheiro de Farinha.

A real independência dos tribunais de contas e instituições semelhantes face ao poder executivo está no topo das preocupações da Organização Internacional das Instituições Superiores de Controlo (INTOSAI) – ver Declarações de Lima e México, de 1977 e 2007, e Resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas A/66/209, de 2011, e A/69/228, de 2015. Uma das boas práticas recomendadas pela INTOSAI é a nomeação dos presidentes, de entre os membros da instituição, com experiência mínima de 5 anos, ou de pessoas que desempenhem ou tenham desempenhado funções equivalentes em instituições congéneres nacionais ou da União Europeia (Principle 2, GUID 9030, 2019, INTOSAI).

Pois bem, no TdC exercem funções 18 juízes, muitos deles oriundos das magistraturas. Chegaram lá todos por mérito próprio, num concurso que avaliou a sua competência, experiência e independência. Se é para nomear alguém com um perfil que dê garantias de imunidade a favores ou desfavores políticos a quem quer que seja, não há-de ser assim tão difícil o primeiro-ministro e o Presidente da República encontrarem no próprio tribunal um futuro presidente com essas qualidades. Nota: Texto escrito antes de conhecida a nomeação do novo presidente do TdC

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