Educação para a Cidadania no Espaço Escolar

Os programas dos partidos evidenciam essas diferenças, uns com mais pendor para a neoliberalização da escola, outros com mais tendência para a sua democratização.

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Rui Gaudencio

Nenhuma discussão sobre a educação e o currículo é neutra, como se existisse de modo abstrato fora do contexto temporal daqueles que nela intervêm. Por isso, a noção de uma escola “sem partido”, ou ideologicamente depurada de ideias diferentes e contraditórias, é uma ideia peregrina, senão terrivelmente perigosa, porque transporta aquilo que pode ser uma forma declarada de endoutrinamento. O debate sobre a Educação para a Cidadania, recentemente iniciado – e deseja-se que jamais seja finalizado – reflete dois campos em confronto, respaldados em manifestos e artigos de opinião.

Falemos então da escola pública, laica e inclusiva. Se a ideia de uma escola para todos está consagrada como uma universalidade incontestada, os caminhos para uma aprendizagem, que ajude as crianças e os jovens a pensar criticamente, numa atitude de consciência cívica ampla sobre si e sobre os outros, são ainda percorridos com muita dificuldade, sobretudo quando a escola é olhada somente pelo lado dos resultados e dos números. Escreve John Dewey, em 1902, que “possuir todo o conhecimento do mundo e perder a própria pessoa é um terrível destino, tanto na educação como na religião”.

Há uma questão que é consensual, pois ninguém discordará, decerto, que a escola é pública, embora o modo de a concretizar, através de um sistema educativo nacional e de estabelecimentos escolares, tenha entendimentos diferentes, necessariamente filtrados por questões ideológicas, transcritas nas opções políticas. Os programas dos partidos evidenciam essas diferenças, uns com mais pendor para a neoliberalização da escola, outros com mais tendência para a sua democratização.

A educação é política. Tal como o currículo. Como não há nada numa escola que seja totalmente aleatório, as opiniões sobre o modo de concretizar a Educação para a Cidadania nesse espaço formal de aprendizagem são, obrigatoriamente, diversas, mais ainda quando estas perguntas são colocadas: facultativa ou obrigatória? Disciplina ou área transversal? Que conteúdos? Que professores? Que formação de professores?

Porém, já não será desejada a objeção de consciência sobre os conteúdos escolares, ainda que as querelas sobre certas teorias (por exemplo, teoria criacionista e teoria de evolução das espécies) estejam frequentemente no centro de debate, noutros países. À partida, o ensino domiciliário, já definido por lei, representa um modo particular de objeção de consciência quanto à frequência da escola, ainda que não signifique a sua negação, já que compete à escola a sua validação final.

A educação é também social. É a eterna dualidade entre instrução e educação. O ensinar e o aprender representam conceções distintas sobre a escola e as suas funções e sobre o currículo oficial, de natureza nacional, com disciplinas, tempos letivos e programas. Tudo isso são componentes de um currículo estruturado numa lógica nacional, como tem sido o caso português desde meados do século XIX.

É muito tardiamente que surge a Educação para a Cidadania na escola portuguesa. Em 1917, o decreto sobre as orientações do ensino liceal estipula que deve ser dada atenção ao desenvolvimento moral dos alunos, devendo haver palestras para que os alunos sejam instruídos acerca dos direitos e deveres dos cidadãos e de toda a organização social. Fala-se, de igual modo, de educação cívica no projeto de lei de João Camoesas, apresentado em 1923, e baseado em ideias de António Sérgio e Faria de Vasconcelos.

Com o Estado Novo, as Atividades Circum-escolares, em 1947, têm objetivos pedagógicos e doutrinários bem claros (para além da dimensão política presente na disciplina Organização e Administração Política da Nação). Já em 1930 tinha sido decidida a frequência obrigatória de sessões semanais de Instrução Moral e Cívica, alterada, em 1936, para Educação Moral e Cívica. No período democrático, iniciado em 1974, a Educação para a Cidadania está no centro do debate, sem consequências na vertente escolar, mesmo que o assunto tenha sido mais discutido com a aprovação de Lei de Bases do Sistema Educativo, em 1986, que consagra uma área de dimensão social e pessoal da educação em contexto escolar (art.º 47º).

No currículo oficial de 1989, é criada a disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social, do 1.º ao 12.º anos, em alternativa à Educação Moral e Religiosa Católica (ou de outras confissões). De facto, foi sol de pouca dura, já que as escolas jamais dispuseram de docentes habilitados para tal. Em 2001, a Formação Cívica, do 1.º ao 9.º anos, surge como área curricular não disciplinar, de frequência obrigatória, mantendo-se a Educação Moral e Religiosa Católica (ou de outras confissões) como área curricular disciplinar, de frequência facultativa (cujo estatuto não tem sofrido alterações desde 1968).

Nos planos curriculares de 2012, a Educação para a Cidadania é definida como área transversal, já que se entende que a cidadania é passível de ser abordada em todas as áreas curriculares, não sendo imposta como uma disciplina isolada obrigatória. Já pouco tempo antes, por questões economicistas, a Formação Cívica deixara de existir nas escolas.

Por sua vez, em 2018 – e no quadro de uma Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania – Cidadania e Desenvolvimento é, no 1.º ciclo, uma área de integração curricular transversal, no 2.º ciclo, uma disciplina da área ‘Línguas e Estudos Sociais’ e, no 3.º ciclo, uma disciplina da área ‘Ciências Sociais e Humanas’. No ensino secundário, pode ser uma disciplina autónoma ou uma prática de coadjuvação, no âmbito de uma disciplina, ou uma área transversal.

Quer dizer, em síntese, que são várias as denominações para esta área curricular e/ou disciplina, com decisões fortemente relacionados com determinados períodos políticos, pois o consenso é algo que não tem existido ao nível das políticas educativas, mais ainda quando se trata da Educação para a Cidadania, que não deveria ser a área mais empobrecida do currículo nacional, com tendência (bastante exagerada) para ser confundida com a educação para a igualdade de género e com a sexualidade em meio escolar.

Retirando-se estas duas dimensões, seria restituir à Educação para a Cidadania a paz perpétua, facto que não é desejável, nem possível, numa sociedade aberta, plural, cidadã e conscientemente ativa em torno de problemas, valores e atitudes. E é aqui que está o dissenso em torno desta área/disciplina do currículo nacional.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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