O tiro aos fundos: prevenção da corrupção não passa pela contratação pública

Começam a ser coincidências a mais na área da justiça e do estado de direito para delas não se fazer caso.

1. O mesmo governo, a mesma ministra da Justiça e o mesmo primeiro-ministro que, ao fim de cinco longos anos de inércia, apresentaram uma estratégia de combate à corrupção, querem, nas vésperas da chegada da “bazuca” de fundos europeus, “flexibilizar” e “simplificar” o regime da contratação pública. Recorro intencionalmente à palavra “bazuca” – que diz muito do modo ávido e quase larvar como se encara o instrumento de recuperação –, porque é essa a terminologia que o primeiro-ministro se deleita e compraz em utilizar. Quanto mais carrega e insiste na imagem da “bazuca”, mais inculca a ideia de que o que importa é “disparar” e “bombear” dinheiro de qualquer maneira. As denominações e as etiquetas raras vezes são acidentais. Pois bem, em nome de um suposto alívio da burocracia e de ganhos de eficiência, o governo amanhou e rascunhou um conjunto de alterações ao regime dos contratos públicos. Alterações essas que levantam todas as dúvidas, alimentam todos os receios e libertam todos os fantasmas do desperdício, do arbítrio, do favorecimento, do desvio e da instrumentalização dos fundos que aí vêm. Não se trata aqui de matéria de opinião ou de embirração da oposição; ela está sufragada pela posição sustentada do Tribunal de Contas, mas também por um amplo consenso na comunidade jurídica.

2. É de facto incompreensível que um governo que diz ter uma agenda contra a corrupção, ainda por cima alicerçada na prioridade dada à prevenção, ordenhe, ao mesmo tempo, uma legislação “facilitadora”, laxista e complacente numa área tão sensível como a dos fundos europeus. Ou seja, num dos campos do direito administrativo em que mais deviam incidir as ditas regras de prevenção da corrupção e do abuso. Agora que o Ministério da Justiça quer que as empresas fiquem obrigadas a ter planos e estratégias de detecção e prevenção da corrupção, vem o governo dispensar a administração pública dos mais elementares cuidados que a podiam contrariar. Os privados têm de se precaver dos riscos que os decisores públicos passam a estar dispensados de prevenir. O governo não pode alegar sequer que desconhece os meandros técnicos da legislação, pois, ao mais alto nível, tanto a ministra da Justiça como o ministro da Economia são reputados especialistas destas áreas, conhecendo muito bem o terreno que pisam. Eis um campo em que não há folga para atenuantes ou desculpas.

 3. No quadro europeu, a propósito dos fundos mobilizáveis na estratégia de resiliência e recuperação, tem-se debatido muito a questão da “condicionalidade”. A palavra é maldita, para quem como nós sofreu as constrições da troika. Mas posta de lado uma qualquer receita desse género, há, sem dúvida, duas garantias – ou se se quiser, duas condições – a que a atribuição e a utilização de tais fundos devia estar sujeita. Uma é o respeito pelo princípio do Estado de Direito – a regra do rule of law. Outra é a existência de mecanismos que assegurem o bom uso dos fundos e previnam os desvios e as fraudes. Tenho insistido abundantemente neste ponto: a União Europeia e os Estados Membros têm de fazer depender o recurso aos fundos de garantias do seu bom uso. Talvez o governo português e o primeiro-ministro, deleitados com a linguagem explosiva das “bazucas”, não se tenham apercebido: a generalidade das pessoas com que falo olha com reservas e cepticismo para este novo pacote de ajuda. Não porque não o ache necessário ou até imprescindível. Antes porque receia que seja utilizado para projectos megalómanos, amiguismos partidários, empresas fantasma, formações no papel, miragens digitais. O sucesso do programa de relançamento da economia depende da confiança na qualidade e na transparência do mesmo. As regras de atribuição e utilização dos fundos – largamente inscritas no regime da contratação pública – não podem deixar de ser claras, transparentes e fomentadoras da qualidade das candidaturas. Ao contrário do que o governo faz supor na justificação atabalhoada desta “tentativa-tentação”, a transparência e o escrutínio não fomentam a burocracia nem a complicação. Ao contrário, as soluções simples favorecem a garantia de controlo externo. Mas uma coisa são procedimentos simples e claros, outra, bem diferente, são procedimentos simplistas e não controláveis; uma coisa são regras fáceis, outra, assaz diversa, são regras facilitistas.

4. As razões para preocupação com esta deriva do governo são redobradas, porque, em várias instâncias e planos, os sinais de relaxe e complacência são cada vez mais ostensivos. O último deles é a não recondução do Presidente do Tribunal de Contas, Vítor Caldeira. Não se trata apenas de um magistrado que exerceu impecavelmente as suas funções (de resto, ainda está para nascer o governo ou o presidente de câmara que diga bem do Tribunal de Contas). É, além do mais, um magistrado de enorme prestígio europeu: antes de vir para Lisboa, era “só” o Presidente do Tribunal de Contas Europeu. Como é que um país que preza o Estado de Direito e a independência dos tribunais, numa altura em que os fundos europeus terão centralidade, se dá ao luxo de prescindir de um magistrado deste calibre? Tanto falam das Hungrias, das Roménias, das Polónias e de Maltas e isto não lhes faz espécie nenhuma…

Este é o mesmo governo que afastou Joana Marques Vidal. Este é o mesmo governo que acaba de contornar a escolha de um júri europeu independente para o lugar de procurador europeu (painel de que, por sinal, Vítor Caldeira fazia parte), fazendo prover no cargo o seu candidato de preferência.

Começam a ser coincidências a mais na área da justiça e do estado de direito para delas não se fazer caso. A imprensa continua sem questionar a Ministra da Justiça, apesar de todos os casos se inscreverem em áreas da sua órbita. E o primeiro-ministro vai passando pelos pingos da chuva. Podem fazer as juras que quiserem, mas também entre nós se aperta, a cada dia que passa, o cerco ao estado de direito.

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