O impacto psicológico do coronavírus (parte II)

As palavras que usamos também condicionam a forma como pensamos e sentimos algo. Não falemos de distanciamento social, falemos de distanciamento físico. Não pensemos em isolamento, pensemos em protecção. Não nos foquemos na crise, mas antes em oportunidades. Não podemos controlar o futuro, mas podemos controlar a forma como lidamos com ele.

Fechamos o mês de Fevereiro de 2020 com a incerteza sobre o impacto que o novo coronavírus teria na nossa sociedade à medida que este se aproximava. Tivemos de gerir o fluxo constante de informação que os media debitaram e de dar particular atenção, prestando cuidados, aos mais vulneráveis com distanciamento físico. Vivemos 45 dias de estado de emergência e, globalmente, a sociedade portuguesa suportou e cumpriu estoicamente o que lhe foi pedido. 

No entanto, este esforço teve, e tem, custos psicológicos. O desgaste causado pela experiência de stress da pandemia será, na maioria dos casos, reparável, mas requer atenção e cuidados. Vários estudos que foram desenvolvidos neste período dão conta do que precisa de ser feito ao nível da saúde mental. Existem grupos que estão particularmente fragilizados. Além das pessoas que já estavam em situação de vulnerabilidade, acrescem as pessoas que pertencem aos grupos de risco para covid-19 (doentes crónicos e idosos), as que vivem com rendimentos precários e os profissionais de saúde. 

Depois da pandemia, a sindemia

A pandemia veio agravar três problemas na saúde das populações: i) aumentou os casos de violência doméstica, pela implementação das medidas de contingência; ii) agravou a dificuldade no acesso a cuidados de saúde a doentes não covid-19, pela realocação de recursos escassos, com grande impacto negativo nas doenças não transmissíveis; e, consequentemente, iii) deixou grande parte da população num estado de exaustão emocional e de desgaste psicológico. 

Daí que, actualmente, não temos apenas uma pandemia para gerir, temos uma sindemia, o que requer medidas muito mais abrangentes. Uma sindemia caracteriza-se por uma interacção de agravamento recíproco entre problemas de saúde e o contexto social e económico numa dada população. O problema de saúde (neste caso a pandemia de covid-19) agrava os problemas sociais e económicos e vice-versa numa espiral negativa.

Um olhar atento e comprometido com o bem-estar da população permite identificar um conjunto de medidas estruturais, que passam também pela protecção no trabalho e pela segurança social, cuja ausência condiciona o agravamento do impacto da pandemia na sociedade. Urgem respostas de combate à pobreza com Políticas de Trabalho e de Segurança Social que sejam coerentes e consistentes com o ano de 2020 em que vivemos e que façam uma actualização do que a década de 90 implementou.

Políticas que sejam transversais a toda a sociedade e que encerrem de vez a percepção de que existem trabalhadores com toda a protecção e trabalhadores sem protecção nenhuma. Ou, ainda, a ideia de que centenas de lares ilegais, de que as notícias dão conta, são algo que toda a gente sabe que existe e continuará a existir sem que o termo ‘ilegal’ faça lembrar que vivemos num Estado de Direito Democrático. É importante que se discuta o hidrogénio para o futuro estratégico do país, mas será incompreensível que não se discuta isto também.

Da adequação das medidas e das teorias da conspiração

A origem do vírus, e a forma como este se espalhou pelo mundo, permanece algo dúbia e, ainda que existam evidências que sugerem não se tratar de algo fabricado laboratorialmente, não existem ainda estudos que permitam descartar em absoluto o seu uso intencional como arma biológica. Estes ‘vazios’ são rapidamente preenchidos por teorias da conspiração na Internet alimentadas pela suspeição face a personalidades como Bill Gates que, tendo feito fortuna na informática, tem feito enormes investimentos nos últimos anos na área da saúde e da vacinação. Assim, crescem movimentos que negam a perigosidade do vírus e que alegam que as medidas de saúde pública, como o uso de máscara comunitária, são uma tentativa de controlar e oprimir a população e de lhes impor uma vacina que lhes fará mais mal que bem. 

O vírus é real e temos de lidar com a sua existência. Da adequação das medidas tomadas face à sua perigosidade só poderemos aferir muito mais tarde e será impossível saber como teria sido caso as medidas fossem outras, apenas comparar com o que outros países fizeram. Contudo, é essencial que se identifiquem erros e que estes sejam devidamente analisados para que daí se retire conhecimento a implementar nas próximas medidas. Esta é uma premissa do raciocínio clínico e, a esse nível, felizmente a abordagem a casos covid-19 é actualmente mais informada e eficaz do que era em Março de 2020, quando apareceram os primeiros casos em Portugal. 

Sabemos que o uso das máscaras ajuda a diminuir os contágios e as vacinas são um dos grandes avanços de conhecimento científico da humanidade que têm permitido salvar vidas. Não vivemos numa sociedade que apenas assegura direitos e liberdades individuais, também requer de nós um conjunto de deveres e o de defender e promover a protecção da saúde é um deles – “todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover”, n.º 1 do art. 64.º da Constituição da República Portuguesa. Façamos a nossa parte. 

É fundamental que não nos seja ocultada informação e que se permita um escrutínio independente das decisões tomadas tanto no plano político, como no plano técnico-científico. Num regime democrático é expectável que o governo governe e que a oposição se mantenha activa no contraditório, de forma construtiva. Uma pandemia não é uma guerra. Daí que seja positivo que, ao menos, saibamos agora quem são os especialistas que informam os decisores políticos. As analogias podem ser muito úteis em comunicação, mas também podem ser redutoras, enganadoras e limitadas. 

Afirmar que estamos ‘em guerra com o vírus’ é bastante desadequado. As palavras moldam a forma como desenvolvemos a percepção da realidade que vivemos. Associadas às palavras estão significados, memórias e emoções que nos influenciam. Instala-se o desânimo e a apatia ou renovam-se forças e ergue-se a esperança. As palavras são importantes. A forma como as utilizamos também o é. Não é possível intimidar ou desencorajar um vírus. De que serve afirmar que estamos em guerra com ele?

Precisamos de alerta e prontidão, mas temos de diminuir a hostilidade e a desconfiança. Precisamos de filtrar a quantidade imensa de informação que circula, mas não podemos confundir isso com censura e falta de transparência. Precisamos de gerir a incerteza e o desconhecido, mas não devemos permitir que sobre assuntos relevantes se instale o silêncio – os ‘vazios’ serão rapidamente preenchidos. Uma pandemia não é uma guerra. 

O futuro incerto 

Entramos agora no mês de Outubro com a perspectiva da segunda vaga. É impossível determinar a dimensão dessa vaga, mas é estimável que o número de casos possa ser dois a três vezes superior com a chegada do Inverno. 

A maioria dos casos na segunda vaga serão moderados e não requerem internamento, pelo que serão encaminhados para isolamento em casa. As famílias deverão preparar-se para acolher situações em que um membro da família está infectado e, consequentemente, toda a família tem de ficar em casa. E ainda situações em que um elemento da família, por contacto directo com alguém infectado, na escola ou no trabalho tem de ser testado e permanecer em casa por precaução. Esta dinâmica irá causar disrupção na vida das escolas, das empresas e das famílias. E, apesar de ainda ninguém nos ter dito isto, temos de nos preparar e adaptar. Quando não podemos mudar a direcção do vento, resta-nos reajustar as velas.

As limitações devidas à pandemia obrigam a menos deslocações, a menos consumo e a economia retrai-se. Muitas pessoas perderam o emprego/trabalho ou estão na perspectiva de o perder. O número de casos covid-19 aumenta com a chegada do Inverno e a sua gestão trará novos desafios aos serviços de saúde e à população. Há rumores de conflitos crescentes e de novas guerras frias e quentes a estalar pelo mundo. O futuro parece agora bastante incerto.

É normal sentir medo e ansiedade face a toda esta incerteza. Estranho seria não o sentir. As emoções podem apoderar-se de nós e é importante reconhecer que é expectável e normal que elas surjam. Temos é de as controlar e não deixar que sejam elas a controlar-nos. Procurar analisar e compreender o estado emocional que vivenciamos é o primeiro passo para as controlar. 

As palavras que usamos também condicionam a forma como pensamos e sentimos algo. Não falemos de distanciamento social, falemos de distanciamento físico. Não pensemos em isolamento, pensemos em protecção. Não nos foquemos na crise, mas antes em oportunidades. Esta não é a altura para nos fecharmos e isolarmos. Temos de manter os contactos sociais e de falar abertamente com quem nos é próximo sobre o que nos preocupa e sobre como podemos lidar com isso. 

Esta não será a altura para desistir e ceder à incerteza ou ao medo. Não será a altura de alinhar rapidamente com discursos radicalizados e de conspirações que, de vez em quando, ‘dizem umas coisas acertadas’. Até um relógio parado está certo duas vezes ao dia e nem por isso serve. Importa não esquecer que coragem não é sobre a ausência do medo, antes sobre a capacidade de fazer o que precisa de ser feito apesar do medo. Não podemos controlar o futuro, mas podemos controlar a forma como lidamos com ele. 

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