“Charlie foi pioneiro no desenvolvimento de um modelo animal para a hepatite C”

Graças à criatividade e perseverança de Charles M. Rice, temos medicamentos antivirais que conseguem curar mais de 95% das pessoas com infecção por hepatite C, reduzindo assim o risco de morte por cirrose e cancro do fígado.

Fiz o doutoramento em bioquímica, biologia celular e imunologia na Universidade de Harvard e no Instituto de Tecnologia do Massachusetts (MIT) a estudar o citomegalovírus humano e como este vírus consegue evadir a detecção pelo sistema imunitário. Uma das suas estratégias envolvia uma proteína celular que também era usada pelo vírus da hepatite C para se tornar mais infeccioso – o que me intrigou.

Charlie Rice, um dos premiados com o Nobel da Fisiologia ou Medicina de 2020, era uma das autoridades mundiais em vírus da hepatite C desde que, em 1997, tinha demonstrado que aquele vírus sozinho pode causar hepatite, ao injectar ARN viral produzido em laboratório no fígado de chimpanzés. Em 2006 acabava de publicar um novo sistema de cultura do vírus que permitia recapitular todo o seu ciclo de vida em células no laboratório. Havia milhares de novas perguntas para responder. Vinda de um projecto de investigação fundamental, tentada a experimentar a investigação aplicada que Charlie então fazia, e armada de técnicas de bioquímica e biologia celular que agora poderiam ser aplicadas ao vírus da hepatite C, no início de 2008 fui fazer um pós-doutoramento no Centro para o Estudo da Hepatite C, ou Rice Lab, na Universidade Rockefeller, em Nova Iorque.

Era um laboratório com quase 50 pessoas que, como eu, trabalhavam noite e dia, num vírus com um pequeno genoma e cerca de dez proteínas, para o qual não havia cura e não havia vacina e que afectava milhões de pessoas no mundo. Havia na altura apenas uma terapia disponível, um tratamento com interferão, que resultava apenas em cerca de 30% dos casos, tinha uma duração de um a dois anos e efeitos secundários terríveis.

O meu projecto consistia na análise de um clone do vírus que havia sido optimizado ao longo de um ano em cultura de células para ser 100 vezes mais infeccioso do que o clone inicialmente publicado em 2006. Encontrei uma série de mutações muito interessantes e passei os meus dias a tentar perceber o mecanismo através do qual aquelas mutações tornavam o novo vírus mais infeccioso.

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A investigadora Joana Loureiro DR

Em 2011, o mundo acordou para um novo cocktail de direct-acting antivirals, isto é, fármacos desenhados para inibir o vírus da hepatite C, que não só eram muito mais eficazes, curando cerca de 95% dos pacientes em escassas semanas de tratamento, mas também mais bem tolerados. Isto foi uma grande vitória para toda a comunidade científica, e para a qual muito contribuíram as descobertas de Charlie ao longo das décadas. Curiosamente, a cura, apenas possível devido à investigação fundamental do vírus, também significou que o financiamento para a investigação da doença diminuiu abruptamente e que até Charlie teve de fazer o downsize do seu laboratório e muitos jovens investigadores como eu (que voltei ao Instituto Gulbenkian de Ciência) tiveram de mudar um pouco o curso da sua investigação.

Harvey J. Alter, Michael Houghton e Charles M. Rice viram agora ser-lhes atribuído o Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina pela descoberta fundamental do agente causador da hepatite C, que possibilitou o desenvolvimento de aplicações como exames ao sangue e novos medicamentos que salvaram milhões de vidas. Numa altura em que ela é tão necessária e se encontra sob a ameaça das pressões dos interesses do mercado e do retorno do investimento público na ciência, este prémio é um importante sinal de apreço da Academia Sueca pelo papel crucial da investigação fundamental.

Transmitido pelo sangue, o vírus que causa a hepatite C é um importante problema de saúde global: afecta mais de 1% da população mundial e um número significativo de pessoas infectadas de forma crónica desenvolverá cirrose ou cancro do fígado. Os modos mais comuns de infecção são por meio da exposição a pequenas quantidades de sangue. Isso pode acontecer pelo uso de drogas injectáveis, práticas de injecção inseguras, cuidados de saúde inseguros, transfusão de sangue e produtos sanguíneos não testados e práticas sexuais que levam à exposição ao sangue.

Foi no início dos anos 70 que Harvey Alter, dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, mostrou que sangue de pacientes com hepatite podia transmitir a doença a chimpanzés. A doença misteriosa ficou conhecida como hepatite “não A, não B”.

No final da década de 1980, Michael Houghton, que trabalhava na multinacional de biotecnologia Chiron (agora trabalha na Universidade de Alberta, no Canadá), usou uma estratégia na altura completamente não testada, à base de anticorpos encontrados em doentes, para isolar a sequência genética do novo vírus, que foi chamado “hepatite C”.

Já no final dos anos 90 foi Charles M. Rice, então na Faculdade de Medicina da Universidade de Washington em Saint Louis (agora trabalha na Universidade Rockefeller), que forneceu a peça final do puzzle, mostrando que o vírus da hepatite C sozinho pode causar hepatite, ao injectar ARN viral produzido em laboratório no fígado de chimpanzés.

Nos anos 90, décadas depois do auge do sex and drugs and rock and roll dos anos 60, nos EUA e um pouco por todo o mundo começaram-se a ver milhares e milhares de casos anuais de fibrose, cirrose e cancro do fígado em pessoas até aí aparentemente saudáveis. Se não fosse a criatividade e a perseverança de Charlie, não teríamos os medicamentos antivirais que temos hoje e que podem curar mais de 95% das pessoas com infecção por hepatite C, reduzindo assim o risco de morte por cirrose e cancro do fígado.

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O investigador Charles M. Rice John Abbott/Universidade Rockefeller/Reuters

Charlie foi pioneiro no desenvolvimento de um modelo animal para a hepatite C, algo que atormentou os investigadores da área durante décadas. A falta de um modelo adequado dificultou o desenvolvimento de uma cura definitiva ou de uma vacina protectora para este flagelo mundial. Charlie enfrentou corajosamente o desafio de desenvolver um modelo animal para a doença, o chimpanzé. Contudo, a investigação era lenta, extremamente cara e os benefícios visíveis pareciam escassos.

Em 1997, conseguiu demonstrar que chimpanzés podiam ser infectados e desenvolver uma doença semelhante à hepatite C mediante injecção de ARN viral produzido no laboratório, o que desde logo o tornou uma estrela na comunidade científica.

Mas Charlie não se deixou deslumbrar e foi continuando as suas descobertas, lentamente, passo a passo, desenterrando pistas sobre o funcionamento do vírus da hepatite C. Fez de novo o que parecia impossível em 2006, ao desenvolver o primeiro sistema de produção de um clone infeccioso do vírus no laboratório, em culturas de células de hepatócitos humanos modificados. E de novo em 2011, ao reportar o primeiro ratinho de laboratório modificado e capaz de ser infectado e replicar o ciclo de vida completo do vírus, algo que a comunidade científica precisava desesperadamente com a proibição da experimentação em chimpanzés. Entretanto, criou outros modelos da infecção pelo vírus, nomeadamente os primeiros organóides, culturas tridimensionais de células de fígado, que reproduzem muito melhor as características da doença do que as culturas de células descritas nos artigos de 2006 e depois.

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