Nunca se viu tanta obsessão pelo corpo

A obsessão por corpos imaculados intensificou-se com a pandemia. Já não se trata apenas de ter saúde, é preciso patenteá-lo.

Nos anos 90 as novas estrelas rock eram os cirurgiões plásticos e de estética. Foi uma altura em que o país despertou para as operações. Os seios, lábios, narizes e barrigas nunca mais foram as mesmas. Nos salões da alta sociedade eram felicitados pelos “milagres” operados. As intervenções atribuíam estatuto. O PIB crescia ao ritmo do botox. O dinheiro, como sempre, criava a ideia de que se podia mudar o destino. O corpo. A passagem do tempo.

Depois a bolha financeira rebentou, e muitos seios tiveram de esperar para insuflarem. Em termos práticos os cirurgiões foram substituídos pelos chefes de cozinha nas capas das revistas, e o império de clínicas de José Maria Tallon deu lugar ao império de restaurantes de José Avillez. O burguês “somos o que comemos” impôs-se, embora o austero “somos o que podemos comer”, esteja mais próximo da realidade, ao mesmo tempo que surgiu um exército de esteticistas, nutricionistas ou personal trainers. Tudo actividades com muita saída durante a pandemia.

Durante o confinamento o correr ao ar livre, ou à volta da mesa de jantar, com tutorial do YouTube, foram um êxito. Depois do medo inicial, disseminou-se a ideia de que “os outros é que morrem”, isto é, os idosos ou doentes crónicos. Resultado? Estamos ainda mais atentos aos corpos uns dos outros. Vigiamo-nos. Já acontecia. Mas intensificou-se. Já não é só a elegância, a saúde e o respirar bem-estar. É ter de o exibir. Nunca se viu tanta obsessão pelo corpo.

Pelo nosso e dos outros. Procuramos sinais de debilidade. Os mais velhos são olhados de lado. São o espelho que preferíamos não ver. Expressões de dor a levantarem-se da cadeira. Dificuldades respiratórias. Cataratas. Pele enrugada. Perda de autonomia. Personificação da morte. Quase ninguém suporta olhar a velhice de frente. Escondemo-la em asilos. Isolamo-la com a ilusão de que paramos o relógio com cremes, massagens, regeneração celular ou mesoterapias. Foucault tinha razão. O corpo é o lugar ao qual estamos inevitavelmente condenados. Mas nem todos da mesma forma.

Continuam a existir disparidades na maneira como se olha para o envelhecimento masculino e feminino. São mais elas que não devem aparentar a idade que têm. Não espanta que a beleza nunca seja a ideal. Há sempre uma parte do corpo que gera insatisfação. Curiosamente à medida que se foram emancipando das tarefas domésticas é como se os mandamentos da beleza se tivessem imposto mais. Querem ir ao restaurante da moda, mas quase não comem. Controlam as calorias, o fitness torna-se mania e a balança num instrumento de tortura.

A celulite, que faz naturalmente parte da fisicalidade, é quase patologia, como se comer chocolate fosse pecado. Como se não pudessem desfrutar. Quem agradece é a indústria farmacêutica para quem a celulite é um enorme capital, ou os cirurgiões homens que fazem pelo seu sustento. O importante é levar uma existência leve e despreocupada, parece ser a mensagem. Ocupa-te do teu corpo, não penses. Se queres ser valorizada, tens que te ajustar aos padrões de beleza do Instagram.

Algumas mulheres destinam parte do dia ao físico. Preparam-se antes de sair, de dormir e até de existir. A aparência quer-se jovem e sofisticada. Já a velhice, no homem, pode representar a sabedoria, a erudição, a experiência. Na tribo, eles eram os velhos sábios, elas as acabadas, ou mesmo as “bruxas”. Agora é, felizmente, mais complexo, mas a velhice é sinónimo de fragilidade, moléstia, ausência de produtividade e de despesa. Tudo o que esta sociedade não deseja. É preciso pois reivindicar uma forma de estar colectiva mais justa, humana e igualitária, onde a velhice não seja segregação, e o envelhecer do corpo aceite como parte da condição inata da vida.

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