“Autonomia estratégica”, novo conceito europeu

Como será a nova ordem global e qual deveria ser a preferência europeia? Na verdade, existem três cenários básicos possíveis.

O último Conselho Europeu elevou “a autonomia estratégica” ao nível dum conceito central para a nova fase do projecto europeu. As implicações serão múltiplas no plano não só externo, mas interno.

A crise covid tem vindo a expor múltiplas fragilidades da integração europeia: em falhas nas cadeias de abastecimento em produtos vitais, na cooperação para a saúde pública, no funcionamento do mercado interno europeu e na sua dependência do exterior em sectores chave. Tudo isto num momento em que a cooperação internacional e o sistema multilateral estão minados por dentro, como se compreendeu bem no desfile de discursos que os líderes políticos mundiais fizeram na recém Assembleia Geral das Nações Unidas para comemorar o seu 75.º aniversário.

Vamos a caminho duma nova ordem mundial, resta saber qual. Há duas grandes novidades: a emergência de líderes de pendor nacionalista e autoritário, incluindo nos EUA, e a emergência da China como hiper-potência global.

A China tem vindo a construir uma caixa de ferramentas completa para desenvolver influência global. Isto começou com a exportação mundial, melhorando as cadeias de valor acrescentado com políticas industriais ativas, de formação e investigação, construindo depois um mercado interno atrativo para o investimento direto estrangeiro, comprando ativos estratégicos no mapa mundial com o apoio em bancos e fundos soberanos, alargando finalmente a influência global com Faixa e Rota (One Belt, One Road) e assumindo posições no ciberespaço.

Como será a nova ordem global e qual deveria ser a preferência europeia? Na verdade, existem três cenários básicos possíveis:

– A fragmentação em curso da ordem global atual e o surgimento de uma estrutura policêntrica com zonas de influência, podendo atingir o nível de competição sistémica entre diferentes potenciais ordens globais. Estes diferentes polos e zonas de influência podem também tender a tornar-se mais virados para o interior e a utilizar um sistema multilateral enfraquecido para as suas necessidades específicas. Até agora, este parece ser o cenário mais provável.

– Um renascimento ocidental, especialmente se houver uma inversão da situação atual nos EUA. Isto pode não mudar muito no que se refere à atitude americana em relação ao comércio, mas poderia certamente trazer uma nova atitude americana às normas climáticas ou dos direitos humanos, bem como um novo compromisso americano com o sistema das Nações Unidas. No entanto, temos agora um novo mundo, e este renascimento ocidental já não seria suficiente para evitar o primeiro cenário.

– A renovação da cooperação internacional com um multilateralismo para o século XXI. As hipóteses de tal cenário dependem da construção de uma grande conjunção de forças que envolva países, organizações regionais, entidades da sociedade civil de diferentes tipos, e também cidadãos interessados mesmo sob regimes políticos autoritários. Esta seria uma conjunção global de forças, que poderia contar com um núcleo de actores fortemente empenhados, bem como numa geometria variável de alianças consoante diferentes objetivos.

A União Europeia está agora no caminho do desenvolvimento de instrumentos mais fortes de soberania europeia nos domínios orçamental, económico, social e ambiental, devendo visar afirmar-se como uma entidade política completa, com um interesse vital na defesa e renovação dum sistema multilateral a nível mundial e na construção de alianças globais de parceiros.

Essas alianças poderão ter variações consoantes os objectivos. União Europeia e China podem trabalhar em conjunto nas frentes do clima e da pandemia, mas estarão em campos diferentes no que respeita os direitos humanos e a democracia.

Mas há uma nova fronteira para melhorar a governação global que deve ser plenamente compreendida nas suas implicações. Uma nova dimensão da realidade, o ciberespaço, está a ser massivamente amplificada e transformada pelo efeito combinado da Internet das Coisas que liga triliões de objetos e serviços à inteligência artificial através da nuvem (cloud). Até agora, estamos a caminho de uma competição geoestratégica no ciberespaço que terá enormes implicações para a realidade física como a conhecemos. Em contrapartida, é possível melhorar os algoritmos de governação a todos os níveis. Mas isso só pode acontecer se construirmos uma governação global do ciberespaço, a qual é ainda muito inconsistente e frágil.

A União Europeia vai ter que actuar nesta frente, com políticas externas e internas, se quiser desenvolver a sua via para a transformação digital, muito diferente da americana e da chinesa em vários domínios: uso dos grandes dados (big data) para melhorar os serviços públicos, condições de trabalho online, protecão da privacidade e da democracia, obrigações fiscais das grandes plataformas. Aqui está um bom exemplo do que deveria ser autonomia estratégica e renovação do quadro multilateral.

Presidente da FEPS, Fundação Política Europeia. Ex-ministra, ex-eurodeputada

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico​

Sugerir correcção