Estratégia para o Hidrogénio: alinhá-la com os interesses do país

Deixar o mercado manifestar à vontade as suas preferências, num quadro que atribui ao Estado o papel de promotor da iniciativa privada, de financiador de último recurso e de reparador de “falhas de mercado”, facilitou aos diversos projetos uma priorização ao lucro sustentada por uma desproporcionada valorização do acesso à cadeia de valor global do hidrogénio. Isto é penalizador da sustentabilidade ambiental.

Portugal carece de política industrial e a execução da Estratégia Nacional para o Hidrogénio (EN-H2) pode ser um passo acertado nessa direção. A indústria é garante de postos de trabalho, cria valor e é o sector que mais estabiliza o emprego. A tecnologia do hidrogénio não é de hoje, contudo a sua utilização deve ser abordada com cuidado. Entretanto, a urgência da transição energética, nomeadamente face à crise ambiental, colocou premência na produção de energia de fontes renováveis. O investimento no hidrogénio verde representa uma aposta numa tecnologia limpa, necessária ao armazenamento da energia renovável produzida em excesso por outras fontes, e fomenta a descarbonização.

Para se perceber o que está em causa importa analisar, por um lado, o enquadramento europeu em que esta iniciativa emerge e as suas condicionantes e, por outro lado, fazer uma reflexão sobre o papel do Estado nesta Estratégia.

A EN-H2 enquadra-se dentro da Aliança para o Hidrogénio Limpo – um fórum no âmbito da política industrial europeia –, que pretende coordenar e maximizar o impacto das ações conjuntas dos parceiros relevantes neste sector: empresas, entidades públicas, centros de investigação e sociedade civil. Na prática, uma plataforma que identifica projetos com envergadura industrial, procurando resolver problemas com a tecnologia de base hoje disponível e afastar estrangulamentos ao seu aumento de escala. Estes constituem obstáculos a um envolvimento fácil por parte da iniciativa privada. Por isso, a principal função desta parceria público-privada é a intermediação entre os detentores de capital e os empresários. A nível europeu estabeleceu-se a meta de angariar para esta Estratégia 430 mil milhões de euros, dos quais 145 mil milhões com origem em instituições públicas. Para acelerar a participação portuguesa na Aliança foi constituído um concurso de identificação de “Projeto Importante de Interesse Comum Europeu” (IPCEI) do Hidrogénio. Os IPCEI têm a particularidade de permitir auxílios de Estado para “corrigir” falhas de mercado.

Desenhada em torno da sustentabilidade ambiental, social e económica, a EN-H2 estabelece três grandes objetivos: a reconversão da central termoeléctrica de Sines, âncora da produção industrial de hidrogénio verde para exportação; a descarbonização dos consumos; e a criação de um Laboratório Colaborativo do Hidrogénio voltado para a investigação e qualificação de quadros.

Em Portugal, a produção de energia solar fotovoltaica é muito reduzida: menos de 5% da produção por fontes renováveis e menos de 3% quando incluímos a componente importada, argumento para prolongar no tempo o recurso ao gás natural através da incorporação de hidrogénio. Além disso, o encerramento das centrais de Sines e do Pego cria um défice de capacidade que, a ser substituído por energia solar, requereria um aumento da capacidade instalada em 8 GW (Figueiredo et.al, 2019 [1]). Apesar de se prever o seu aumento de 1,5 para 9,9 GW, em 2030 (PNEC) [2], existe o risco de, em função das dinâmicas de mercado, a produção de energia solar ser absorvida pelos mercados externos em detrimento da sua utilização no plano nacional. Neste contexto, apesar da importância da reconversão da central de Sines, será prejudicial a prioridade cega dada à produção industrial de hidrogénio verde para exportação.

Entende o Governo que o projeto de reconversão de Sines pode constituir um IPCEI com importantes efeitos de arrastamento sobre a cadeia de valor do hidrogénio. O Governo selecionou 37 projetos, de entre o dobro das manifestações de interesses. O investimento privado previsto totaliza entre 7 e 9 mil milhões de euros, complementado por cerca de mil milhões de apoios públicos ao investimento e à produção. Através do que foi tornado público, sabe-se que mais de 2/3 do volume das manifestações de interesse se referem a opções que priorizam o mercado externo, nomeadamente, o consórcio EDP-Galp-REN para Sines, o Green Flamingo, ou mesmo os projetos da Bondalti e da Fusion Fuel.

Deixar o mercado manifestar à vontade as suas preferências, num quadro que atribui ao Estado o papel de promotor da iniciativa privada, de financiador de último recurso e de reparador de “falhas de mercado”, facilitou aos diversos projetos uma priorização ao lucro sustentada por uma desproporcionada valorização do acesso à cadeia de valor global do hidrogénio. Isto é penalizador da sustentabilidade ambiental. Em nosso entender, esta atuação descura o planeamento e hierarquização das prioridades da agenda nacional, com potenciais custos sociais e económicos. Seria (e ainda poderá ser) importante valorizar a produção própria de energia, nomeadamente por parte das instituições públicas, como os hospitais e as escolas, levando-os a aderirem à iniciativa enquanto produtores e consumidores de energia solar e de hidrogénio. Será um erro seguir políticas que se limitem a replicar a abordagem da Comissão Europeia sem considerar devidamente uma estratégia de planeamento de política industrial, as necessidades socioeconómicas e a especificidade contextual portuguesa. É preciso ter em conta as próprias tendências de re-territorialização e aproximação dos circuitos de produção e consumo.

A participação financeira do Estado deve ser adequadamente valorizada e o Governo tem de ser rigoroso e dinâmico na viabilização dos projetos. O Estado participa com fundos públicos na constituição deste cluster – cerca de 12% dos capitais necessários – logo, será de esperar que este financiamento seja justa e proporcionalmente remunerado (como qualquer acionista), perante o sucesso dos projetos. Além disso, há valores, responsabilidades e princípios éticos, nomeadamente nos planos social e ambiental, que têm de ser respeitados. E balizas a colocar no que diz respeito a opções de gestão. Deve ficar vedada a possibilidade de recurso a engenharia financeira especulativa, à utilização de paraísos fiscais, à disseminação de trabalho precário e indignamente remunerado, a fossos salariais desmesurados, ou a desigualdade salarial entre géneros. Além de tudo isto, é indispensável assegurar, desde já, a participação dos trabalhadores e suas organizações, em particular os sindicatos, na discussão de opções, na delineação da estratégia e na sua implementação.

Eugénia Pires, Economista, investigadora do CoLABOR
Manuel Carvalho da Silva, Coordenador do CoLABOR

[1] Figueiredo, R., P. Nunes, M. Meireles, M. Madaleno and M.C. Brito (2019), Replacing coal-fired power plants by photovoltaics in the Portuguese electricity system, Journal of Cleaner Production, vol. 222, pp.129-142
[2] PNEC 2030, Plano Nacional Energia e Clima 2021- 2030

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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