Há quem chegue aos Açores e recuse cumprir as regras de testagem. População pensou que o vírus já tinha “sido ultrapassado”

O responsável da Autoridade Regional de Saúde dos Açores reconhece as dificuldades de combater a pandemia ao mesmo tempo que existem “dificuldades quer a nível judicial, quer comportamental” por parte dos cidadãos.

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rui pedro soares

Existem passageiros que desembarcam nos Açores e não cumprem as medidas impostas para quem chega à região. Não apresentam um teste negativo à covid-19 à chegada e recusam ser testados aquando do desembarque. Já aconteceu com três pessoas e a Autoridade Regional de Saúde (ARS) nada pode fazer a não ser sensibilizar e remeter o caso para a justiça.

A informação foi confirmada ao PÚBLICO pelo responsável pela ARS, Tiago Lopes, que confessa ter recebido a notícia com “algum transtorno”. Sobretudo, diz, devido aos “elementos da Direcção Regional da Saúde” e “aos profissionais de saúde” que “estão no terreno há largos dias e semanas”, a “trabalhar afincadamente para conter de forma eficaz a covid-19” e que agora “se vêem a braços com essas dificuldades, quer a nível judicial quer comportamental, que se têm verificado nos últimos tempos”.

As dificuldades com a justiça a que Tiago Lopes se refere não começaram agora. Primeiro, a 16 de Maio, devido a um habeas corpus, o Governo Regional decidiu acabar com as quarentenas obrigatórias em hotel (medida que viria a ser considerada inconstitucional três meses depois). Depois, novos habeas corpus acabaram com o isolamento profiláctico, determinado de acordo com as orientações da Direcção-Geral da Saúde, a passageiros que tinham viajado de avião num lugar próximo a um infectado. Outro habeas corpus, conhecido a 27 de Agosto, levou o Tribunal de Ponta Delgada a restituir a liberdade a uma pessoa que se encontrava em quarentena depois de ter tido um teste positivo à covid-19.

“Depois isso acaba por ser um comportamento e uma reacção em cadeia”, diz o responsável pela ARS, justificando que a população açoriana sentiu que a pandemia já estava ultrapassada a partir de 5 de Junho, dia em que os Açores ficaram sem qualquer caso activo, apesar de ter sido registado novo caso dias depois. “Todos nós sentimos esse fenómeno aqui na região. Ou seja, como registámos zero casos positivos activos e assim nos mantivemos durante vários dias houve, efectivamente, uma sensação de segurança e de que tudo isso já teria sido ultrapassado”, afirma.

A pandemia, porém, “ainda não acabou”. O director regional reconhece que o trabalho da Autoridade Regional da Saúde “é muito difícil neste momento”, sobretudo quando comparado com a fase inicial em “que ninguém questionou nem colocou em causa as medidas aplicadas” e que levaram a região ao “sucesso” no “combate à pandemia”. “Fizemos da região autónoma dos Açores uma região exemplar a nível nacional e mundial”, reforça.

Balanço positivo

A 15 de Março foi detectado o primeiro caso de covid-19 nos Açores, na ilha Terceira. Nessa altura, já existiam 170 casos no resto do país. Desde daí, os Açores registaram 306 casos de infecção, tendo tido um máximo de 146 casos activos em simultâneo. Morreram 16 pessoas.

“O balanço que acabamos por fazer destes seis meses de pandemia da covid-19 é, efectivamente, positivo”, diz o responsável pela Autoridade Regional de Saúde. Não será arriscado dizer que nos Açores foram aplicadas as medidas mais restritivas para fazer frente à covid-19: nos meses do confinamento era proibido sair à rua (nem para passear o cão) e a maior ilha, São Miguel, esteve isolada com cercos sanitários em todos os seis concelhos.

Em perspectiva, Tiago Lopes diz que nem no passado, nem hoje, as medidas passaram por incutir o medo. São medidas incutidas com base no “conhecimento que advém de além-fronteiras”. “Não se trata muitas vezes como se procura transmitir erradamente que estamos aqui a querer incutir o medo. Estamos é a ser perfeitamente realistas”, afirma.

Apesar de terem morrido 12 pessoas no Lar do Nordeste, na ilha de São Miguel, Tiago Lopes salienta que a situação ainda “poderia ter sido mais drástica, à semelhança do que aconteceu em território continental”. “Entre todas as IPPS [instituições particulares de solidariedade social], estruturas para idosos, unidades de cuidados continuados” do arquipélago “tivemos uma em que registou a entrada de uma utente que acabou por ser um foco de contágio”, observa. “É uma situação que mesmo doravante não estamos livres de acontecer por mais bem preparados que estejamos”.

Ao longo deste tempo, os Açores conseguiram sempre evitar a transmissão comunitária – e a sequência de contaminações no Lar do Nordeste foi quando esteve mais perto de acontecer. Tal foi possível devido ao “dispositivo de saúde pública”, composto pelas unidades e delegações de Saúde e pela Protecção Civil: uma “linha da frente bastante eficaz” em “conter eficazmente as cadeias de transmissão”, identificando-as de “forma precoce”.

O sistema das entradas de passageiros também permitiu rastrear os casos. Foram 73 os positivos identificados através da rede de laboratórios no continente e que, assim, não chegaram a viajar para a região. Dos testes feitos no desembarque foram registados mais de 70 casos e no teste ao sexto dia de permanência na região foram identificados mais de 40 casos que num primeiro teste tinham dado negativo.

“Linha da frente está a ter uma sobrecarga inequívoca”

Seis meses após o primeiro caso, Tiago Lopes admite que a “linha da frente está a ter uma sobrecarga inequívoca”. “A nossa preocupação ao longo desse tempo foi preparamo-nos para a aquisição de mais recursos humanos e melhores recursos materiais”, indica. Exemplos são o anúncio da contratação de 579 profissionais de saúde em todas as carreiras e da reformulação da zona de testagem no Aeroporto de Ponta Delgada, que funcionou sob tendas desmontáveis desde Março até Setembro. “É um trabalho que não terminou, está longe de ter terminado.”

Para o futuro, Tiago Lopes afirma ter a noção que irá existir ainda uma “sobrecarga bastante maior” nas equipas de saúde, devido à convivência entre o SARS-CoV-2 e a gripe. Será um “desafio adicional”, também devido ao regresso às aulas e ao trabalho. Com os “planos de contingência”, está tudo “preparado” – mas apenas “dentro do possível”. “As unidades de saúde foram preparadas dentro da medida do possível para o efeito”, diz. E lembra: “Como já foi largamento comprovado, nenhuma região, nenhum país do mundo estava capacitado para combater este vírus como gostaríamos.”

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