Uma fotografia no telemóvel: os rostos das mortes por covid-19 na Índia

Oito meses depois de a pandemia ter chegado à Índia, registam-se quase 100 mil mortes no país. As famílias queixam-se da falta de acesso e qualidade dos cuidados de saúde. A insegurança e o preconceito fazem com que nem sequer tenham oportunidade de se despedirem dos seus entes queridos.

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Yogesh Kanojia, um empresário de 36 anos, mostra uma fotografia do seu pai, Balbir Mulchand Kanojia, 57 anos, que morreu com covid-19. "No nosso país quase não há sistema de saúde, os cuidados estão perto de zero, o governo aconselha a beber água morna e a tomar Ayurvedic [um medicamento] e a vivermos por nossa conta", afirma Amit Dave / REUTERS
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"Magoa-me quando me lembro do meu pai deitado numa cama de hospital sem qualquer auxílio. Os médicos não estiveram à altura do seu dever como deviam ter estado. Nunca se aproximaram do meu pai para o examinar. Acabou por morrer. As autoridades deviam educar não só as pessoas, mas também os profissionais de saúde. O meu pai estaria vivo agora, se tivesse tido os cuidados médicos adequados no hospital. A ausência dele é algo que ninguém conseguirá preencher. A minha vida nunca mais será igual" - Humera Ulfat, doméstica, com 42 anos de idade, perdeu o seu pai, Mohammad Ashraf Baba, um lojista, que faleceu vítima de covid-19 Sanna Irshad Mattoo / REUTERS
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Reuters

Oito meses depois de o novo coronavírus ter chegado à Índia, as mortes causadas pela doença poderão ultrapassar as 100 mil a qualquer momento. No total, já foram infectadas 6,5 milhões de pessoas, número apenas ultrapassado pelos Estados Unidos. 

A agência Reuters esteve à conversa com familiares de 30 pessoas que morreram com a doença na Índia. Desde Querala, na costa Sul do país, até à província de Caxemira, no sopé dos Himalaias, a Norte. Pessoas comuns de todas as classes sociais, incluindo polícias e médicos que combateram o vírus na linha da frente.

Num país que ainda é conservador e que se encontra em desenvolvimento, alguns dos familiares das vítimas referiram que sofreram represálias após se saber que pessoas próximas tinham sido infectadas pelo vírus. Outros referiram que enfrentaram depressões e problemas monetários. Todos consideram que podia ter sido feito mais para salvar as pessoas que faleceram. 

Vida depois da morte

Javed Ali, um médico de Nova Deli, morreu em Julho com 42 anos. A mulher, Hena Kausar, também médica e agora única cuidadora de dois filhos, confessa que não sabe o que irá fazer sem o marido. “A nossa vida mudou”, diz. “Eu quero continuar a ser médica mas tenho de escolher entre o trabalho e as crianças.”

Por sua vez, Fardeen Khan perdeu a mãe — ​Noor Jahan — em Junho. Já perdera o pai em 2018. “Não tenho apoio financeiro, agora”, admite. “Não tenho trabalho.”

Para alguns destes familiares, não foi fácil lidar com algumas das reacções das autoridades e dos vizinhos ao seu luto. 

Aliza Ali mostra uma fotografia do pai Javed Ali, que morreu vítima de covid-19. "Ele estava a tomar todas as precauções enquanto trabalhava na linha da frente sem qualquer pausa, até que teve sintomas. Tenho orgulho nele; os meus filhos estão orgulhosos dele. Mas é muito difícil enfrentar esta situação. Não há um único dia em que não pensemos nele e choremos", refere Hena Kausar, a esposa de Javed Danish Siddiqui / REUTERS
Fardeen Khan mostra uma imagem da sua mãe, Noor Jahan. "Desde que a minha mãe morreu, a minha vida mudou. Não há cura ou vacina para a doença e eu só queria que houvesse uma para a minha mãe sobreviver." Adnan Abidi / REUTERS
Sunita Patil, 44 anos, perdeu o marido. "Tenho duas filhas pequenas quase sem rendimentos. Vai ser muito complicado vivermos sem o meu marido." Francis Mascarenhas / REUTERS
Mir Umer Altaf, dirigente de uma farmacêutica, perdeu a avó. "A minha avó tinha ido a um casamento e na semana seguinte começou a ter sintomas. Como eu estou no ramo da saúde, consegui fazer com que ela fosse testada e estava infectada, mas assintomática. Alguns dias depois, começou a ter problemas a respirar e arranjámos forma de lhe dar oxigénio, mas piorou e faleceu rapidamente. Como a nossa religião diz que quem morre durante uma pandemia é um mártir, ela é uma mártir." Sanna Irshad Mattoo / REUTERS
Rakjumar Verma morreu vítima de covid-19. "À noite, o meu marido começou a sentir-se mal", começa por contar a esposa, Renu. "Chamei um vizinho e uma ambulância e levámo-lo para o hospital, que fica perto. Como o hospital não o podia receber, ele deixou de responder dentro da ambulância. Só o conseguimos levar para dentro e colocá-lo numa maca depois de eu ter entrado e dito aos médicos que o meu marido não respondia." Anushree Fadnavis / REUTERS
A sogra de Biplab Kumar Chatterjee não resistiu à covid-19. "A perda da minha sogra é dolorosa. Eu também tive covid-19. Eu recuperei, mas a minha sogra morreu. Esteve num hospital privado durante três dias; tentámos fazer o nosso melhor mas não conseguimos salvá-la por causa da idade dela e de outros problemas de saúde que tinha." Rupak De Chowdhuri / REUTERS
Bhaginath Jagannath Adhav era polícia. "A vida ficou mais solitária desde que o meu pai partiu, ninguém consegue substituir o lugar dele. O meu pai deu o seu melhor enquanto esteve ao serviço, lembrando da importância do distanciamento, entre outras medidas." Francis Mascarenhas / REUTERS
Mohd Irfan viu o pai morrer com covid-19. "O meu mundo colapsou. Ele era tudo para nós. Era como se fosse o telhado para mim e para a minha família. Ele protegia-nos. Não consigo ter palavras para descrever a perda. Há uns anos, perdi a minha mãe. Agora foi o meu pai. Esta pandemia afectou-nos muito. A vida não será igual. Tenho saudades da sua presença" Danish Siddiqui / REUTERS
Motilal Singhi morreu vítima de covid-19. Tinha 59 anos. "A vida da nossa família mudou depois da morte do meu pai. Era não só o pilar da família mas da sociedade em que vivemos. Ele próprio dedicou 25 anos ao serviço de trânsito em Calcutá, algo considerado um serviço honorário", refere Mayank Singhi, o filho Rupak De Chowdhuri / REUTERS
"As pessoas têm sido cuidadosas com a pandemia e tentam seguir as orientações do Governo, mas na nossa localidade os habitantes não seguem as orientações e não usam máscaras. Por isso é que a minha mãe contraiu covid-19", considera Gitaben Bipinbhai Vakil, cuja mãe morreu com covid-19 Amit Dave / REUTERS
A sogra de Lipika Ghosh Dastidar morreu com covid-19. "Pode-se dizer que a minha sogra era o meu único apoio na casa dos meus sogros nos últimos 25 anos. Era quase minha mãe. Parte-me o coração que tenhamos cuidado tanto dela e ela acabou por morrer. Os meus cunhados estão em Londres e não puderam vir aos ritos de despedida. Perdemo-la e ainda estamos traumatizados" Rupak De Chowdhuri / REUTERS
Shaikh Ansar Ahmed morreu com covid-19. "Tudo mudou. Perdemos um grande apoio, o único membro masculino da minha família. Depois da morte do meu pai, eu não gosto de fazer as coisas que fazia quando ele estava vivo. Claro que a minha mãe enfrentou uma grande mudança na vida dela. A nossa vida ficará estável no futuro, mas será muito difícil para a minha mãe. Os cuidados de saúde têm de ser muito bons e grátis para as pessoas pobres, durante a pandemia", refere a filha de Shaikh Francis Mascarenhas / REUTERS
O pai de Jigeshaben Sanket Surti morreu com covid-19. "Tenho tantas memórias do meu pai. Num dia, estamos sentados a conversar. No dia seguinte foi internado no hospital", refere Amit Dave / REUTERS
Mashesh Dave morreu com covid-19. O filho, Mayank, refere: "Mudaram tantas coisas. Éramos só três. Agora é um vazio. Não durmo de noite. Só me lembro da cara do meu pai e em todas as memórias boas. Houve um aumento repentino de casos. Ficámos assustados com a possibilidade de contágio na nossa casa porque o meu pai trabalhava num hospital. Primeiro, nós não estávamos assustados porque estava tudo fechado e não pensámos que a taxa de infecção pudesse aumentar tanto." Anushree Fadnavis / REUTERS
Amrutha Sangeeth ficou sem a mãe devido à covid-19. "A minha mãe sofria de uma doença de fígado e estava acamada. Um atraso no resultado do teste foi uma das razões da morte dela. Não nos pudemos mover facilmente porque seis outros membros da nossa família foram infectados e hospitalizados. Foi muito difícil organizar os últimos ritos porque os vizinhos tinham medo de contrair o vírus", conta Sivaram V
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Aliza Ali mostra uma fotografia do pai Javed Ali, que morreu vítima de covid-19. "Ele estava a tomar todas as precauções enquanto trabalhava na linha da frente sem qualquer pausa, até que teve sintomas. Tenho orgulho nele; os meus filhos estão orgulhosos dele. Mas é muito difícil enfrentar esta situação. Não há um único dia em que não pensemos nele e choremos", refere Hena Kausar, a esposa de Javed Danish Siddiqui / REUTERS

O marido de Sunita Patel, Vivek, um professor de música de 46 anos, morreu em casa antes de ter conseguido uma cama no hospital. Na manhã seguinte, conta, trabalhadores municipais foram a sua casa enquanto gritavam para os habitantes saírem para serem levados para um centro de quarentena. 

“Não tiveram qualquer respeito pelo facto de ter havido uma morte na família no dia anterior, e nós estamos de luto”, refere.

Também Nadeem Akhtar deixa críticas às autoridades. Em Abril, perdeu a irmã, Shabana Ahmed, uma arquitecta de 52 anos que faleceu em Nova Deli. “Aquilo que me incomodou ainda mais do que o sistema de saúde foi o comportamento da sociedade”, confessa. “O bairro onde a minha irmã vivia boicotou toda a sua família. Não houve qualquer apoio emocional ou moral depois da morte dela. A sociedade falhou-nos.”

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Sunita Patil, 44 anos, perdeu o marido. "Tenho duas filhas pequenas quase sem rendimentos. Vai ser muito complicado vivermos sem o meu marido" Francis Mascarenhas / REUTERS

Oportunidades perdidas.

O frágil e rudimentar sistema de saúde da Índia debate-se para conseguir lidar com enorme número dos casos de covid-19 no país. Muitas das famílias de vítimas dizem que houve hipóteses de curar os infectados que não foram aproveitadas.

Jamal Khan, um agricultor de 41 anos, teve febre no mês de Agosto, enquanto estava no distrito de Bijnor, no estado mais populoso da Índia, Uttar Pradesh. O seu irmão, Asim, diz que os médicos não conseguiram diagnosticar a infecção por covid-19. Só quando foi transferido para Nova Deli, dez dias depois, é que o vírus foi detectado. Nessa altura, os pulmões já estavam afectados e morreu pouco depois, segundo Asim.

“Se ele tivesse sido diagnosticado a tempo, no local de onde era natural, claramente que teria sobrevivido”, considera o irmão.

O marido de Rekha Khandait — Jayant, de 58 anos  é um dos mais de 200 polícias que morreram por causa do vírus só no estado de Maharashtra. Rekha é uma das várias pessoas que diz que a falta de oxigénio contribuiu para a morte. “Não consigo acreditar que já passaram seis meses. Ainda não contei sobre ao nosso filho que o pai morreu”, refere.

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Rekha Khandait perdeu o marido. "Sei que o meu marido morreu mas continuo a sentir a sua presença" Francis Mascarenhas / REUTERS

Tilak Raj, um engenheiro informático de 38 anos, afirma que quando a sua mãe, Krishna Devi, foi hospitalizada não havia botijas de oxigénio na ambulância. Quando chegaram ao hospital, a que forneceram ficou vazia em cinco minutos.  “Se tivéssemos um serviço de saúde melhor, a minha mãe teria sobrevivido.”