Morte anunciada de uma ruptura constitucional que nos devolveria às trevas

Juridicamente, nem mesmo o objectivo pretendido pelo projecto de revisão constitucional do Chega deixaria de ser inconstitucional à luz do próprio. É obra!

Em artigo de 2 de Março de 2020, já aqui me pronunciei, de um prisma jurídico, sobre o acerto da decisão do Presidente da Assembleia da República (AR) em não admitir um projecto de lei que violava frontalmente a Constituição da República Portuguesa (CRP). Julgo que, embora possa agora tomar decisão contrária, dado a Comissão respectiva se ter pronunciado em sentido oposto ao anterior, destino diferente não deveria ter o projecto de revisão constitucional apresentado. Limitar-me-ei, sobre a mesma, a uma pura análise jurídica, obviamente muito sumária num espaço como este e limitada a alguns pontos.

“O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e proporcional, combinado com um nível de isenção tributária a definir em lei especial.” Violador do princípio da igualdade (art. 13.º da CRP) e da progressividade da capacidade contributiva de cada cidadão, um milionário pagaria a mesma taxa de IRS que um/a trabalhador/a que aufere o salário mínimo nacional. Violaria ainda o art. 81.º, al. b), que permanece inalterado no projecto, pois ele dita que o sistema fiscal é um dos instrumentos, no seio das incumbências prioritárias do Estado, a fim de “promover a justiça social, assegurar a igualdade de oportunidades e operar as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento”.

Fim da forma republicana de governo e dos limites materiais de revisão constitucional. É sabido que no partido em causa há vários monárquicos (como em quase todos os demais) que, legitimamente, anseiam ter um rei como Chefe de Estado. A CRP, neste momento, não o permite, nem sequer a convocação de um referendo sobre a matéria, visto que, e bem, há um conjunto de valores fundamentais sem os quais a nossa Lei Fundamental já não seria a mesma – limites materiais de revisão –, mas uma outra, operando-se uma ruptura constitucional profundíssima. 

Ciente disso, o projecto pretende revogar o art. 288.º da CRP, que consagra os ditos limites. Note-se que os mesmos, sendo na aparência cláusulas pétreas, não são inultrapassáveis, pois pode propor-se a sua revogação e, depois, numa segunda revisão constitucional, consagrar-se a forma monárquica de governo, por exemplo. Todavia, tenho muitas dúvidas que, na mesma revisão, como se pretende, se possam fazer as duas coisas: acabar com os limites materiais e abrir caminho, substituindo a forma expressa de República por “nação”, a uma eventual monarquia. Creio que tal viola a própria finalidade dos limites materiais e que só se poderia propor o fim da forma republicana de governo como imperativa numa segunda revisão constitucional. Donde, na forma e na substância, a proposta padece de inconstitucionalidade.

Uma última nota neste ponto: para se ter uma ideia, quando a CRP visa impedir, ao menos através de uma única revisão, que se termine com os limites materiais, estamos a falar do verdadeiro ADN do nosso Estado tal como o conhecemos. O seu fim importaria uma grave ruptura constitucional e acordaríamos, no dia seguinte, num novo Portugal. Se dúvidas houvesse, esses limites – que agora se pretendem apagar – são, entre outros, a independência nacional e a unidade do Estado; a forma republicana de governo; a separação das Igrejas do Estado; os direitos fundamentais; a coexistência do sector público, do sector privado e do sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção; o sufrágio universal, directo, secreto e periódico na designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder local; o pluralismo de expressão e organização política; a separação e a interdependência dos órgãos de soberania; “a independência dos tribunais; a autonomia das autarquias locais; a autonomia político-administrativa dos arquipélagos dos Açores e da Madeira”.

“O exercício do cargo de primeiro-ministro e de ministro de Estado está circunscrito a indivíduos portadores de nacionalidade portuguesa originária.” Claramente inconstitucional, porquanto o princípio geral da CRP – que o projecto não altera – no tratamento entre cidadãos nacionais e estrangeiros é o da tendencial igualdade e universalidade (art. 12.º), o que, por maioria de razão, importa que não se possam estabelecer tais distinções entre portugueses de nacionalidade originária ou adquirida. Há, aliás, uma série de instrumentos internacionais ratificados por Portugal que depõem em sentido oposto ao projecto, bem como os tratados da UE e o seu Direito derivado.

“Em alguns casos especialmente previstos na lei, e nos termos estritos definidos por lei especial, poderá haver lugar a castração físico-cirúrgica.” O que escrevi aqui a 10 de Dezembro de 2019 para a castração química aplica-se, também por maioria de razão, para a castração física, ainda mais grave e permanente. E a alteração ao art. 30.º, n.º 1, da CRP agora pretendida ("Não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade que violem os princípios e os valores da CRP") introduziria uma verdadeira contradição intra-sistemática na Lei Fundamental, pois não é claro, como tem sempre de ser a Lei, em especial a penal que a desenvolveria (princípio da determinabilidade da lei criminal – art. 29.º da CRP), o que seriam os tais “princípios e valores”, pelo que, através de vários direitos fundamentais que no projecto se mantêm, seria a própria Constituição, assim modificada, que impediria a proposta castração física ou química. Ou seja, juridicamente, nem mesmo o objectivo pretendido pelo projecto deixaria de ser inconstitucional à luz do próprio. É obra!

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