Augusto Santos Silva: “Não vejo nenhuma razão para uma crise. Não faz sentido dramatizar”

Marcelo, diz o ministro Augusto Santos Silva, é uma “voz avisada e serena” no sistema político português. Sobre Ana Gomes recusa esclarecer crítica que fez sobre extremismos de esquerda.

Este executivo escolheu governar com a esquerda, mas sem acordos formais. Sabendo o que se sabe hoje, com a pandemia, preferia ter a segurança desses acordos?
A ideia de que podemos reescrever a história é um pouco ingénua. Nós fizemos um caminho com os parceiros parlamentares entre 2015 e 2019 e em 2019 o PCP comunicou-nos que não queria fazer acordo escrito. Por razão de lógica política, pareceu-nos que não fazia sentido fazer um acordo escrito só com um dos parceiros, em que as condições apresentadas por esse parceiro não eram aceitáveis para um governo de centro-esquerda comprometido com a Europa. Agora, houve desenvolvimentos. O OE 2020 foi viabilizado com o concurso não só do PCP, BE e PAN, mas também de uma deputada independente. Vamos ver o que vai acontecer com o de 2021. A nossa interacção com os parceiros parlamentares é todos os dias.

O que deseja? Um acordo para este OE ou para todos os orçamentos da legislatura? Se o Governo conseguir apenas um acordo para este OE, ficará a prazo numa situação de fragilidade? É um adiar da crise de que quase todos os dias o primeiro-ministro fala?
O primeiro-ministro já explicou com meridiana clareza que, dado o impacto da crise sanitária, o desejável seria um acordo para o resto da legislatura. Vamos ver.

E, nesse acordo para o resto da legislatura, já admitiria que fosse só com um dos parceiros?
As notícias que surgem sobre um alegado distanciamento do PCP em relação a este arco de apoio à governação ou de diálogo privilegiado com a governação são manifestamente exageradas.

O acordo para o resto da legislatura logo se verá?
Hesito, porque não tenho o conhecimento necessário para a minha resposta poder ser útil.

António Costa diz que haver crise política seria “insano”. Mas que crise seria essa? O Governo demite-se, se não se aprovar OE? Teríamos um governo de gestão e o país em duodécimos? Crise política seria o quê, para as pessoas entenderem?
Em primeiro lugar, estão a fazer-me perguntas que são tipicamente dirigidas ao chefe de governo. Em segundo, parece-me uma evidência que a não aprovação do OE provocaria uma crise em Portugal. A minha obrigação como ministro dos Negócios Estrangeiros é adicionar a todas as outras razões esta: nós reconquistámos credibilidade e prestígio na Europa e esse é um capital que não devemos desbaratar a nenhum pretexto. No próximo semestre, assumiremos a presidência da UE e discutiremos com a UE o nosso plano de reformas e o nosso projecto de Orçamento. Se há altura que não recomenda nenhuma espécie de instabilidade política, é esta.

Quando faz esse apelo, inclui o PSD?
No sentido em que todos os partidos defendem os seus programas, interesses, mas têm em conta o interesse nacional, sim. Agora, não peço ao PSD, que é o partido líder da oposição, que deixe a oposição. Não é disso que se trata. O dr. Rui Rio compreende muito bem o cenário europeu e sabe que em matéria europeia nós temos posições muito próximas. As vossas perguntas estão a obrigar-me a dramatizar numa área em que a dramatização não faz sentido. Do que nós já sabemos sobre a proposta de OE, do que nós já sabemos dos compromissos que o Governo assume, vamos enfrentar esta crise sem recorrer a nenhum dos instrumentos de austeridade propriamente dita, ou seja, continuando a aumentar o salário mínimo, criando uma nova prestação social, investindo fortemente no SNS, aumentando o investimento público, mobilizando um conjunto de fundos que o país nunca teve. Portanto, nós vamos avançar. Então um orçamento que vai avançar vai ser reprovado na AR? Não acredito. Não vejo substantivamente nenhuma razão para essa crise. Como muito bem diz o deputado Jerónimo de Sousa, Roma e Pavia não se fizeram num dia. O que interessa saber é se nós temos progressos ou retrocessos e eu não vejo nenhum retrocesso.

Disse esta semana que o PS não devia apoiar Ana Gomes e que os extremismos não deviam ser combatidos com outros extremismos. Referia-se a Ana Gomes ou a outros candidatos?
Era um alerta conceptual geral.

Onde é que acha que há extremismos à esquerda?
Há extremismos na vida política, há certamente. Ou polarizações. Já temos bem presente no debate político um extremismo que põe como objectivo mudar o regime e num sentido não democrático e trazer para Portugal discussões moralmente repugnantes. Esse extremismo deve ser combatido com a força da moderação. Espero que surja uma candidatura suficientemente abrangente para que a grande maioria do eleitorado se reveja.

O PS vai debater as presidenciais a 24 de Outubro, o que pode ser antes de Marcelo anunciar uma decisão. Esta pode ser a quarta eleição presidencial em que o PS não tem um candidato seu potencialmente vencedor. Isto é normal num partido com a dimensão do PS?
O PS apoiou os presidentes Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio e depois Mário Soares, que perdeu para Cavaco Silva. O professor Marcelo ganhou as eleições numa altura em que na área da esquerda democrática surgiram vários candidatos. Ganhou confortavelmente as eleições na primeira volta e realizou um mandato que é um modelo de equilíbrio. Foi muito importante este equilíbrio entre uma AR de maioria de esquerda, um governo de centro-esquerda claramente europeísta e um presidente que vinha da esquerda da direita. O país lucrou imenso com isso. O PS, quando decidir, deve ter esse elemento em conta.

Ana Gomes não representa a moderação, a seu ver?
Ainda não temos todas as candidaturas apresentadas. Logo veremos qual é a candidatura que melhor protagoniza esta concepção de um presidente da República que é árbitro, que é a representação de todos, que é uma voz avisada e serena no sistema político como tem sido a maioria dos presidentes que a República portuguesa já teve. Veremos a escolha que teremos de fazer, como partido ou cada um de nós.

Sugerir correcção