Trump vs Biden: tirem-me de 2020

Para o telespectador – em especial os eleitores americanos – pouco ou nenhum sumo foi possível extrair daquele limão… E sem sumo, não há limonada.

Foto
Reuters/BRIAN SNYDER

Imaginemos um cenário em que um pai e uma mãe são incapazes de lidar com os caprichos, teimosias e hiperactividade de uma criança de oito anos. Foi assim o primeiro debate presidencial dos EUA. Com tentativas carinhosamente inócuas, o moderador Chris Wallace fazia sucessivos apelos ao menino Trump para que ele ouvisse e respeitasse o tempo do papá Biden que, apesar de ter chamado “palhaço” ao miúdo, ia tentando manter alguma postura e elegância. 

E o debate foi praticamente isto. Já muitas foram as emissoras americanas que reportaram e opinaram sobre esta agora histórica briga de facas num beco escuro e quase todas elas tocam nos mesmos pontos: no quão exaustivo foi o debate e no quão inerte fora Chris Wallace. O moderador, que até então nunca tinha dado muito nas vistas em debates passados, desta vez teve de encher os pulmões algumas vezes para projectar o clássico “Gentleman!”. 

A nível de conteúdos, falou-se, por alto e nos intervalos dos insultos, nos assuntos do ano: o vírus e a economia. Para o telespectador – em especial os eleitores americanos – pouco ou nenhum sumo foi possível extrair daquele limão… E sem sumo, não há limonada. Vejamos: a convite de determinada emissora, 14 “eleitores indecisos” acompanharam a transmissão do debate e, quando questionados sobre o que acharam, as respostas foram: “cansativo”, “exagerado”, “desastroso”, “ofensivo”, “frustrante”, “infantil”, entre outros adjectivos do mesmo campo emotivo.  

Ora, por mais que Biden tenha ainda uma ligeira vantagem sobre Trump na corrida à Casa Branca, não nos podemos esquecer que muito pode ainda acontecer até ao dia 3 de Novembro e que todos os votos “indecisos” ou “flutuantes” contam. Um forte exemplo disso são os 17% de vantagem que Michael Dukakis apresentava sobre George H. W. Bush nas presidenciais de 1988, apesar de ter perdido a eleição por 7,8%. 

Inusitadamente, as imprecisas e por vezes falsas afirmações de Trump no debate reacenderam a discussão sobre a necessidade de “verificadores de factos” em tempo real nos debates presidenciais americanos. Irónica e infelizmente, apesar de vivermos na era da informação, nunca tivemos tantos diagnósticos de desinformação voluntária. Isto é, por mais que estes possíveis e prováveis novos “postos de trabalho” sejam criados, ainda longo será o caminho até alcançarmos um patamar em que as pessoas reflictam sobre determinados posicionamentos de forma mais racional e não tão contaminada por emoções partidárias. 

Evocando agora a frase de Bolsonaro quando confrontado com o número de mortes pela covid-19 no Brasil, pergunto-me: “E daí?”. O que é que nós, resto do mundo, temos a ver com a briga de gatos que foi este debate lá nos EUA? Bem, não é novidade para ninguém que o que acontece lá tem impactos directos e indirectos aqui, nomeadamente no que diz respeito à queda mais acentuada na credibilidade dos vários sistemas políticos mundiais que se verificou na segunda metade de 2016, depois do resultado do “Brexit” e da eleição de Trump. Esta falta de credibilidade nas nossas instituições poderá acentuar-se ainda mais nos próximos anos – o que é deveras problemático porque, enquanto sociedade, recomeçamos a dançar perigosamente entre um “princípio de caos” ou um “princípio de tirania”. 

A verdade é que os últimos anos não têm sido fáceis para muitas pessoas, à excepção, talvez, de alguns afortunados que, com a crise, conseguiram fazer ainda mais fortuna. E acho que todos nós sentimos o quão significativa será esta eleição para a retoma do sucesso económico, social, ambiental e político dos próximos anos. Felizmente, vivemos quase todos em democracia e ainda temos algum poder de escolha através do voto… Mesmo que esta nossa liberdade seja também uma prisão. Saltemos para 2025 por favor e seja o que Deus quiser. 

Sugerir correcção