A coerência da Administração Pública Portuguesa

Como a ineficácia da nossa Administração Pública não tem fronteiras.

If the government is covering up knowledge of aliens, they are doing a better job of it than they do at anything else.”
Stephen Hawking

Enquanto estudante do curso de Administração Pública recorri inúmeras vezes à expressão “nova gestão pública”. Uma expressão com impacto tal, que ouvia replicada tanto nos livros e papers académicos, nas palavras dos docentes e colegas e, principalmente, nos ecos discursivos dos mais diversos governantes. É uma espécie de cola cultural que une os esforços e vontades de todos aqueles que estão ligados à administração pública portuguesa. Efetivamente, na teoria estas palavras têm um impacto enorme. Afinal de contas, quem não gosta de uma administração centrada no cidadão e no seu bem-estar com as ferramentas modernas disponíveis graças aos grandes progressos tecnológicos?

Fora da esfera académica e política, esta expressão perde-se na tradução entre a teoria e a aplicabilidade. Talvez porque na mesma medida em que a Administração Pública vai sendo alterada por estes termos, os mesmos vão sendo adaptados à nossa Administração Pública. Assim, e entre diversas reformas, a da digitalização administrativa sofre pelas liberalidades das compras públicas, e a da qualificação sofre pelos processos de recrutamento para a Administração Pública. Mesmo assim, observamos um progresso.

Onde talvez falha mais este progresso é na cultura organizacional estabelecida, que relega as necessidades dos cidadãos para segundo plano canalizando esforços e recursos para as vontades dos decisores administrativos, desvirtuando as conquistas do Iluminismo. Não nos enganemos com os termos de responsabilização (accountabiltiy), pois existe uma grande desigualdade nas relações de poder entre o cidadão e o Governo e, com o tempo, cada vez mais é banalizado e normalizado este facto.

Esta cultura organizacional está tão enraizada nos nossos serviços públicos que não se limita àqueles no território nacional, mas é exportada como vinho do Porto para as administrações em territórios estrangeiros, por exemplo, as Embaixadas.

Dou-vos o meu exemplo. Aquilo que seria uma interação entre um cidadão e a Embaixada Portuguesa de Dublin, por norma simples e rápida, foi surpreendentemente familiar. O meu cartão de cidadão termina a validade em meados de outubro de 2020. Infelizmente, devido aos constrangimentos provocados pela covid, não foi possível renovar o mesmo ainda em Portugal (consultem as datas disponíveis para agendamento da renovação do CC). Ainda tentei ligar para os serviços, mas ao fazê-lo aprendi o significado de linhas fantasma, o telefone toca como música de fundo, mas ninguém atende.

Como faz parte dos deveres e poderes da embaixada, quando cheguei ao País contactei-os por email a expor a situação. Como resultado, após a troca de diversos emails onde deixei claro a urgência do processo, foi “excecionalmente” agendada a renovação do cartão de cidadão para meados de janeiro. Não sou um génio de Matemática e muito menos de Direito, no entanto, pelas minhas contas, são quatro meses que um cidadão Português fica sem documentos de identificação válidos num país estrangeiro. Bom não é de certeza.

Uma coisa posso dizer, a embaixada cumpre o seu papel de agência de turismo e marketing, representando a boa imagem das férias em Portugal lá fora. Uma aposta legitima, se a embaixada garantisse os recursos suficientes aos cidadãos portugueses a viver sobre a sua alçada.

Kafka ficaria orgulhoso por saber que, um século depois, a sua visão das estruturas ainda resiste aos frutos do tempo. Ter de esperar quatro meses por um processo burocrático obrigatório, sendo obrigado a interagir com funcionários públicos portugueses, é, por falta de outras palavras, um bom modo de visualizar a primeira parte da Divina Comédia de Dante.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção