Sangue e papel

Para um homem que nasceu depois do 25 de Abril, é espantoso que o pensamento político de André Ventura se situe no quadro de um Portugal da era salazarista.

“A nacionalidade portuguesa está a saldo!” Palavras de André Ventura na Assembleia da República onde clarifica o seu pensamento político, numa proposta de decreto-lei que se propõe apresentar: só poderão ser eleitos “primeiros-ministros, ministros, secretários de Estado, indivíduos portadores de nacionalidade portuguesa originária”. Ou seja, filhos de mãe ou pai portugueses, nascidos em Portugal, ou de pais portugueses nascidos no estrangeiro, se o progenitor se encontrar ao serviço do Estado, ou ainda filhos de pais que estejam legalmente em Portugal há pelo menos dois anos, se, e este “se” é fundamental, não tiverem outro passaporte…

Para um homem que nasceu depois do 25 de Abril, é espantoso que o seu pensamento político se situe no quadro de um Portugal da era salazarista, fechado sobre si mesmo, um país avesso à mudança e à modernidade. Caso André Ventura ainda não tenha reparado, o mundo globalizou-se, a circulação planetária de pessoas e bens generalizou-se e todos os países são cada vez mais interdependentes a todos os níveis, incluindo as próprias pessoas que hoje possuem, em número significativo, pelo menos dois passaportes. Ter várias nacionalidades, ser cosmopolita, não significa desvalorizar ou perder aquela onde se nasce e cresce, onde a história, a cultura e a língua nos marca de forma indelével. Mas aparentemente, para André Ventura, nacionalidade é, acima de tudo, sangue e papel.

Talvez o novo candidato português a salvador da pátria queira ir ainda mais longe e pretenda, já agora, republicar as leis medievais de “Limpeza de Sangue”. Aprovadas em Toledo, em 1449, as leis denominadas "Estatutos de limpeza de sangue" foram, na época, instituídas para barrar o acesso dos “cristãos-novos” aos cargos, privilégios e honras públicas, dado que as leis antijudaicas já não se lhes aplicavam. O sangue, e não a religião, tornou-se assim o factor decisivo.

De Espanha, esta prática passará mais tarde para Portugal, onde a prova de “limpeza” de sangue se torna condição indispensável para o acesso a honras e a funções de importância, e a origem cristã-nova uma marca social infamante. Esta legislação só acabará com o Marquês de Pombal, em finais do século XVIII, mais precisamente a 25 de Maio de 1773, quando é abolida definitivamente qualquer distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos.

Na verdade, as leis de limpeza de sangue antecipam o antissemitismo racial do século XIX que terá consequências trágicas no século XX. Considerar que uma ascendência genética, mesmo muito longínqua, deixa uma marca indelével e perpétua, reflecte um modo de pensar racista. Expressões como “maculados” e “impuros”, utilizadas para qualificar na época os cristãos-novos, contêm os germes da ideia essencial do racismo e antissemitismo contemporâneos.

Dir-se-á que isto nada tem a ver com a legislação proposta por André Ventura. Na verdade, nada na sua proposta está relacionado com a questão religiosa, mas o princípio é o mesmo: discriminar em função do sangue; avaliar uma pessoa em função dos genes e não da sua capacidade, honestidade e dedicação ao país de que tem a nacionalidade mesmo que esta não seja de “origem”. 

Do ponto de vista de André Ventura, não sei se Jorge Sampaio teria o sangue suficientemente “limpo” para ser Presidente da República; ou Kruz Abecassis, presidente da Câmara de Lisboa; ou ainda Arons de Carvalho, secretário de Estado, e Diana Ettner, adjunta do secretário de Estado do então ministro da Justiça Alberto Costa… e a lista ultrapassaria certamente os caracteres de que disponho para este artigo. Apenas mais um pequeno acrescento que me dá um grande alívio: com esta lei, eu, que nasci e vivi grande parte da minha vida em Portugal, nunca me poderia candidatar a nenhum destes cargos. Os meus pais, polacos de origem e portugueses por naturalização, tinham mais do que um passaporte…

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