Junto à nascente do Tejo, a herança celta respira através dos “filhos do cervo”

©José Luis Carrillo
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©José Luis Carrillo

No território profundamente despovoado conhecido por “Sibéria Espanhola”, o fotógrafo alicantino José Luis Carrillo ficou preso “como um insecto numa teia”. Tornou-se refém da beleza natural dos lugares que conheceu junto à nascente do Tejo, da profundidade histórica e riqueza antropológica da região, da “simplicidade e honestidade” de quem os habita – pessoas cuja herança genética e cultural remonta à ocupação celta da região, que data de finais da Idade do Bronze, no século XVII a.C,, e se estende no tempo até à invasão romana, cerca de 133 a.C. “Estes homens e mulheres são os últimos colonos celtibéricos dos planaltos espanhóis”, explica José Luis ao P3, em entrevista. “São os Filhos do Cervo.” Ou Children of the Deer, como intitulou o conjunto de imagens que expõe, presentemente, no Mira Fórum, no Porto, ao abrigo do Festival Internacional de Fotografia Encontros da Imagem.

Há cinco anos, em Junho de 2015, quando realizou a primeira viagem até Armallones, o fotógrafo planeava ficar apenas três semanas, mas acabou por permanecer dois meses. No pequeno pueblo estão oficialmente registados 60 habitantes. “Mas, quando lá estive, viviam, na realidade, 24 pessoas. E apenas oito sobraram para passar o Inverno.” Na viagem seguinte, em Novembro do mesmo ano, em vez de dois meses, como previa, José demorou quatro meses a abandonar a aldeia de Checa, com cerca de 60 habitantes no Verão e 30 a 40 no período frio. “Estamos a falar de densidade populacional extremamente baixa, de um habitante por quilómetro quadrado – mais baixa ainda do que a da Sibéria.”

Durante as várias estadias de José Luis Carrillo – que perfizeram nove meses de permanência –, a montanha, o bosque, tornaram-se a sua casa. Dormir sob o denso arvoredo, exposto à amplitude térmica e à escuridão impenetrável, suscitou-lhe “medos ancestrais” que desconhecia. “É duro viver nessas condições”, relembra. “Na primeira noite do primeiro Inverno que lá passei estavam 13 graus negativos.” A amplitude térmica, na região, pode atingir os 30 graus centrígrados num só dia. “Num dia de Verão, podiam estar 35 graus ao meio dia e apenas oito durante a noite.”

No início, Carillo sentiu-se perdido, desorientado; não conseguiu, de imediato, “agarrar” a essência do que queria documentar. A solidão, o frio, a dureza do terreno e a timidez dos habitantes dificultaram a sua missão. “Encontrei sobretudo pessoas que estão habituadas a viver sozinhas e são, por isso, pouco abertas ao contacto com os outros.” A desunião que existe entre eles, os habitantes de cada aldeia, foi também um obstáculo para o fotógrafo. “Como se diz em Espanha, ‘pueblo pequeño, infierno grande’. Ou seja, embora as aldeias tenham pouquíssimos habitantes, é comum vê-los zangados uns com os outros. E se eu falava com uns, outros já não queriam ter contacto comigo.” Mas com tempo, e “com muito tacto”, os residentes começaram a abrir-se mais e a confiar nele. “São pessoas muito honestas e muito sinceras”, observa.

O contacto do fotógrafo com uma família de “neo-rurais”, na aldeia de Armallones, mudou o rumo do projecto. Alfonso, Pilar e os seus filhos, de nomes celtas, Vael, Oter e Velian, tornaram mais evidente a herança milenar nos lugares em redor. E o modo de vida da família, simples e em ligação estreita com a natureza, inspirou o fotógrafo.

A partir de então, José Luis começou a “palpar, fisicamente, o passado celta”: “os castros, os cemitérios milenares, os bosques sagrados e as clareiras onde se cumpriam os rituais e que hoje continuam a ser locais onde decorrem as festas da aldeia” figuram nas imagens que realizou. Assim como as pedras e as árvores, que os habitantes tratam por um nome próprio, como se de gente se tratasse, e que servem de pontos de referência nos caminhos antigos. Todas as pessoas e coisas se transformaram, assim, em personagens da narrativa fotográfica de Carillo. “Dar nomes às coisas vivas e não vivas, criadas por homens ou não, é um reflexo da cultura animista tão característica dos celtas”, explica.

“Mas a figura do veado, do cervo, que é uma obsessão colectiva, foi a que me chamou mais a atenção.” É possível encontrar representações deste animal por todo o território, garante. “Há cabeças de veado nas paredes das escolas, dos centros de saúde, nas lojas, nas casas das pessoas. O veado é, em toda esta região, desde há milhares de anos, um objecto de adoração.” E esse amor antigo está patente, também, nas pedras milenares onde a figura se encontra esculpida, e que o fotógrafo teve “o privilégio” de documentar. “Algumas destas inscrições são secretas, são conhecidas apenas por arqueólogos da região. Estar diante delas, fotografá-las, foi emocionante. Fez-me sentir pequeno, diante de tanto tempo, tantas vidas, tanto legado. Elas dão sentido a toda a História até à modernidade.”

As imagens de Children of the Deer propõem ao espectador uma viagem desde o tempo das cavernas até à modernidade. “Sinto que recebi um prémio, um presente, em troca de todo o sofrimento que senti ao realizar este projecto. Pude olhar a História de perto. Espero que as pessoas possam olhá-la, como eu, através das minhas imagens e que possam reflectir um pouco sobre a perda de contacto entre o ser humano e a natureza. Estar em sintonia com a natureza não é incompatível com a modernidade e não há motivo para não a respeitarmos ou conservarmos.”

A árvore que se chama Astado, em Alustante
A árvore que se chama Astado, em Alustante ©José Luis Carrillo
Eduardo, lenhador, trabalha com madeira desde os 9 anos. Hoje, com 80, continua a recolher madeira para os seus vizinhos
Eduardo, lenhador, trabalha com madeira desde os 9 anos. Hoje, com 80, continua a recolher madeira para os seus vizinhos ©José Luis Carrillo
Vale do Alto Tejo com uma nuvem em forma de animal no fundo
Vale do Alto Tejo com uma nuvem em forma de animal no fundo ©José Luis Carrillo
Álex “Cabeza de ciervo”). Álex vive em Huertapelayo. Durante o Inverno vivem apenas 5 pessoas nessa aldeia isolada.
Álex “Cabeza de ciervo”). Álex vive em Huertapelayo. Durante o Inverno vivem apenas 5 pessoas nessa aldeia isolada. ©José Luis Carrillo
Ángel cuida da floresta, limpa o excesso de mato para evitar os incêndios
Ángel cuida da floresta, limpa o excesso de mato para evitar os incêndios ©José Luis Carrillo
Margarita en Corduente
Margarita en Corduente ©José Luis Carrillo
Fungo em fase de esporulacão
Fungo em fase de esporulacão
Jesús forjando um ferro em espiral, elemento sagrado dos celtas. Jesús e o seu irmão Pascual têm em Checa uma ferraria tradicional onde se continua a forjar com carvão.
Jesús forjando um ferro em espiral, elemento sagrado dos celtas. Jesús e o seu irmão Pascual têm em Checa uma ferraria tradicional onde se continua a forjar com carvão. ©José Luis Carrillo
Cabeça de veado em casa do presidente da junta de freguesia de Armallones. Nesta região, os troféus de caça representam estatuto social.
Cabeça de veado em casa do presidente da junta de freguesia de Armallones. Nesta região, os troféus de caça representam estatuto social. ©José Luis Carrillo
Iris fala com as suas cabras antes da ordenha. Ela e o namorado são jovens neo-rurais que abandonaram Madrid para viver uma vida em contacto com a natureza e o cuidado com os animais
Iris fala com as suas cabras antes da ordenha. Ela e o namorado são jovens neo-rurais que abandonaram Madrid para viver uma vida em contacto com a natureza e o cuidado com os animais ©José Luis Carrillo
Oter no Santuário de Montesinos, um lugar de reunião e adoracão para as povoações dos arredores. Uma vez por ano, as aldeias da comarca fazem uma peregrinação a pé até este lugar e aí discutem temas de interesse comum. Oter (nome celta) nasceu e foi criado em Armallones, que é habitada por 12 pessoas
Oter no Santuário de Montesinos, um lugar de reunião e adoracão para as povoações dos arredores. Uma vez por ano, as aldeias da comarca fazem uma peregrinação a pé até este lugar e aí discutem temas de interesse comum. Oter (nome celta) nasceu e foi criado em Armallones, que é habitada por 12 pessoas ©José Luis Carrillo
O rio Tejo passa por debaixo da ponte de Poveda
O rio Tejo passa por debaixo da ponte de Poveda ©José Luis Carrillo