Portugal não é um quintal das traseiras de Washington

Ou Portugal afasta a chinesa Huawei da expansão da tecnologia 5G ou, se desrespeitar o diktat de Washington, terá de pagar pela ousadia. Isto tem um nome: coacção

Um ano e meio depois das últimas ameaças ao Governo, os Estados Unidos voltam à carga na sua tentativa de pôr Portugal na ordem. Numa entrevista ao Expresso, o embaixador George E. Glass voltou a dizer o que dissera em Fevereiro de 2019 e, ao dizer o que disse, confirmou o ultimato: ou Portugal afasta a chinesa Huawei da expansão da tecnologia 5G ou, se desrespeitar o diktat de Washington, terá de pagar pela ousadia. Isto tem um nome: coacção.

O contra-ataque do embaixador não pode passar despercebido, até porque suscita duas questões fundamentais. A primeira é a de saber se a exigência para que Portugal se afaste da Huawei no 5G faz sentido; a segunda é a de discutir se a coacção que faz sobre um aliado é legítima. Começando por aqui, a resposta é óbvia: não é legítima. Como o ministro Augusto Santos Silva fez questão de recordar, “em Portugal, as decisões são tomadas pelas autoridades competentes”, de acordo com a lei, e não na sequência de pressões externas.

Mas se a pressão é deplorável e faz lembrar a arrogância norte-americana dos tempos em que tratava países (principalmente os da América Latina) como o quintal das traseiras, a substância obriga a uma reflexão mais cuidada. Num momento em que é clara a ambição chinesa de expandir o seu poder pelo globo, conceder a uma das suas empresas emblemáticas influência numa área estratégica como a das telecomunicações é um risco.

Depois dos avisos da União Europeia, depois de a França e o Reino Unido terem afastado a Huawei dos seus planos para o 5G, depois de a Alemanha instituir limites à sua intervenção, Portugal deve repensar o poder que quer conceder à tecnológica chinesa. E deve fazê-lo à luz dos seus interesses, dos interesses europeus e, claro, dos interesses dos seus aliados transatlânticos. O que, obviamente, dispensa os recados insolentes do embaixador. Pelo mais elementar decoro diplomático e pela constatação de que hoje a América está longe de se poder assumir como um exemplo em matérias de democracia ou de transparência.

Saber que o representante diplomático de um Governo entregue a um demagogo populista, que ameaça a ordem multilateral, que resvala para o nacionalismo proteccionista e que afaga os piores governos europeus em nome da sua aversão à União Europeia não credibiliza as ameaças.

Se entre a China e os Estados Unidos, não temos dúvidas na escolha, há palavras e atitudes que se tornam ainda mais inaceitáveis quando vêm de um aliado.

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