Itália: o desgaste dos populismos

O mais notável efeito das eleições regionais italianas de 20/21 de Setembro é o desgaste dos populismos. Eram as primeiras eleições em tempo de pandemia e poderão ter marcado o fim de um ciclo: a antipolítica está a sair da cena. Mas as condições de governabilidade da Itália não estão asseguradas, no momento em que elaborar uma estratégia para sair da crise - e investir a gigantesca soma que o Plano de Recuperação da UE lhe concede - não é apenas urgente: é uma questão de sobrevivência.

As eleições decorreram em seis regiões, de Norte a Sul: Veneto, Ligúria, Toscana, Marcas, Campânia e Apúlia. O balanço numérico é relativamente simples: o Partido Democrático (PD, centro-esquerda) resiste, a Liga, de Matteo Salvini, recua e o Movimento 5 Estrelas (M5S) está seriamente ameaçado, perdendo dois terços do seu eleitorado de 2018. Sublinha La Repubblica: “Nos últimos 15 meses, nos territórios em que se votou, os dois partidos (M5S e Liga) perderam 3,2 milhões de votos.”

Estes números marcam uma inversão de tendência. Depois do sucesso nas legislativas de Março de 2018, o M5S aliou-se a Salvini. A Itália tornava-se uma vez mais num laboratório político, associando no poder as duas grandes correntes populistas, os “anti-sistema” do M5S, ideologicamente ambíguos, e os “soberanistas” da Liga, em deslocação para a extrema-direita.

Verificou-se um curioso fenómeno: enquanto o M5S depressa começou a definhar nas sondagens, subia a Liga, que venceu as eleições europeias de 2019. Salvini rapidamente se apropriou da agenda política do governo, concentrando-se no tema da imigração e dos medos por ela criados. A ruptura dá-se em Agosto de 2019, quando a Liga está no auge das sondagens (37%) e Salvini decide abrir a crise política para provocar eleições, pedindo “plenos poderes”. O M5S, inspirado pelo primeiro-ministro Giuseppe Conte, fez uma inversão de alianças: deixou a direita e coligou-se com o PD.

Salvini sem estratégia

O chefe da Liga prometeu vencer em todas as regiões, o “6-0”. Depois de, em Janeiro, ter falhado a conquista da Emília-Romanha, reincidiu e propôs-se “libertar a Toscana vermelha”. E a táctica de assalto à “fortaleza inimiga”, para provocar a ruptura no governo, voltou a falhar. A retórica de Salvini levou o PD a baixar as expectativas: vencer em duas regiões já seria bom. Venceu em três: Toscana (Florença), Campânia (Nápoles) e Apúlia (Bari). Dadas as expectativas, o “empate” significou uma vitória.

Mais interessante é analisar as vitórias da direita. O candidato do partido Irmãos de Itália (de Giorgia Meloni, direita nacionalista) conquistou à esquerda a região das Marcas (Ancona). Na Ligúria (Génova), a coligação de direita era dirigida pelo berlusconiano Giovanni Toti. A única vitória da Liga é no Veneto (Veneza). Mas é um presente envenenado para Salvini. O vencedor, Luca Zaia, obteve um resultado histórico: 77%. Era apoiado por duas listas, a da Liga e outra sem vínculo partidário (“Zaia presidente”). Só por si, esta segunda lista obteve uma maioria absoluta, ridicularizando a lista oficial.

O problema de Salvini é muito maior. Toca a identidade política do seu partido. Zaia é um “homem do Norte”, que discorda da “nacionalização” da Liga e da troca do antigo “federalismo” pelo “soberanismo”. Quer a autonomia das regiões. Não é eurocéptico. É improvável que dispute a liderança da Liga, mas é muito provável que ponha em causa toda a estratégia de Salvini.

Também o “número dois” da Liga, Giancarlo Georgetti, avisa Salvini de que não pode repetir com Lukashenko os erros que cometeu com Putin. O lugar da Itália, diz, é na Europa Ocidental e não no “grupo de Visegrado”, uma alusão às relações com Viktor Orbán. O lançamento do Fundo de Recuperação Económica da UE beneficia em especial a Itália. É um péssimo momento para ser eurocéptico.

Por fim, a nova “Liga soberanista” está em declínio no Sul. Teve péssimos resultados nestas regionais, se comparados com os das europeias: na Campânia, desceu de 19,2% para 5,6; e, na Apúlia, passou de 25,3 para 9,6. É um duro golpe na estratégia de Salvini. Os seus aliados Meloni e Berlusconi passaram a contestar o seu estatuto de líder natural da direita.

Por fim, a pandemia da covid-19 passou a dominar as preocupações dos italianos. Salvini investiu tudo na questão dos imigrantes, explorando e atiçando os medos italianos.

Entretanto, o mundo mudou e Salvini teve uma conduta inconsequente perante a covid. Os italianos passaram a dar prioridade à boa governação. Não é uma novidade de Setembro. Era já visível em Março, quando o primeiro-ministro Conte passou a ter a aprovação de 71% dos italianos. Anotou na altura o politólogo Ilvo Diamanti: “A emergência do vírus, além das vítimas, gerou medo”; antes, o medo era “o outro” que vinha de África; “agora, ‘o outro’ é um inimigo invisível”. Além do vazio de estratégia, Salvini está a ficar sem discurso.

M5S bloqueia as reformas?

Contados os votos, Luciano Fontana, director do Corriere della Sera, fazia a seguinte análise: “As eleições da pancada no governo, e da sua desagregação, transformaram-se nas eleições da estabilidade que pode levar este governo até ao fim da legislatura [2023]. O M5S deve decidir que coisa quer fazer de grande.”

Depois da vitória do “sim” no referendo sobre o “corte” do número de parlamentares, estão em cima da mesa dois temas cruciais: a lei eleitoral e a reforma “bicameralismo perfeito”. Deputados e senadores têm as mesmas competências, o que atrasa o processo legislativo e fomenta compromissos bastardos, pois é frequente haver maiorias políticas diferentes. Governo e parlamento têm ainda de definir uma nova estratégia económica para receber os quase 300 mil milhões de euros da UE, em subsídios e empréstimos. É, como acima digo, uma questão de sobrevivência.

O problema está agora no campo do M5S. Celebrou a vitória no referendo, mas a dimensão da derrota nas regionais ameaça bloquear “a coisa grande” de que fala Fontana. A maioria do partido percebeu que a antipolítica já não funciona. Mas uma derrota excessiva pode convidar à rigidez e ao regresso da retórica anti-sistema. E, neste caso, não haverá boas notícias para a Itália. Os “grillini” estão partidos em facções. Aguarda-se a convocação dos seus “estados gerais” e a definição de uma liderança. Só então se vislumbrará a rota italiana.

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