Nove famílias inquilinas do IPO estão em risco de ficar sem casa

Instituto Português de Oncologia diz que imóvel tem problemas estruturais e que o vai vender para investir na melhoria dos cuidados de saúde. Moradores dizem-se surpreendidos e vereadora da Câmara de Lisboa mostra-se “estupefacta”.

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Daniel Rocha

Nove famílias que habitam num prédio do bairro lisboeta de São Bento foram informadas pelo senhorio de que os contratos de arrendamento caducaram e que terão de abandonar as casas. O proprietário do imóvel é o Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa e por isso o caso está a gerar indignação política, tendo até levado a vereadora da Habitação a manifestar-se “estupefacta” com “esta atitude de uma entidade pública”.

O IPO Lisboa recebeu o edifício na Rua Cruz dos Poiais através de uma herança, mas a proprietária original determinou que três familiares tivessem o seu usufruto e foram elas que celebraram quase todos os contratos de arrendamento em vigor. A última usufrutuária morreu em Fevereiro.

No princípio de Março, os inquilinos receberam uma carta do IPO a informar que “o usufruto que recaía sobre o referido imóvel extinguiu-se” e que, de acordo com a lei, o contrato estava caducado. “O locado deverá ser restituído, livre e devoluto, a este Instituto no prazo de seis meses após a recepção desta carta”, informa o IPO na missiva a que o PÚBLICO teve acesso. O prazo terminaria no fim de Setembro, mas os inquilinos deverão poder permanecer nas casas pelo menos até ao fim do ano devido à moratória em vigor por causa da pandemia.

“Isto não é humano. Não é humano um hospital de oncologia fazer isto aos seus inquilinos”, indigna-se Fernanda Gomes, de 74 anos, que ali nasceu e habitou toda a vida. Ela e as vizinhas dizem ter sido apanhadas de surpresa porque os seus contratos de arrendamento não referem nem o usufruto nem o IPO. “Nós andámos enganadas estes anos todos”, afirma Fernanda.

Em resposta ao PÚBLICO, o IPO informa que “tendo em consideração que a missão do IPO é prestação de cuidados de saúde, o ensino e a investigação, à semelhança de outros imóveis, o IPO pretende proceder à alienação do prédio, revertendo o produto da venda em investimento em equipamentos e instalações que permitam melhorar a prestação de cuidados de saúde aos doentes oncológicos, dando assim cumprimento e dignificando a finalidade das doações.

Acresce que o IPO Lisboa tomou conhecimento de uma vistoria realizada pela Câmara Municipal de Lisboa em Março de 2019, que aponta a necessidade de realização de obras estruturais que garantam as condições de  segurança e habitabilidade do edifício e, nos termos da legislação aplicável, o IPO Lisboa não tem capacidade nem recursos disponíveis para esse investimento”, acrescenta o instituto. Segundo informações recolhidas pelo PÚBLICO, a solução para o caso poderá passar pela entrada do prédio na bolsa pública a gerir pelo Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU).

No prédio habitam cerca de 20 pessoas, sobretudo mulheres e filhos. Nilza Santos, que é cozinheira num restaurante, mora aqui há seis anos. “Depositámos o mês de Setembro e o IPO devolveu o dinheiro, já não o aceitou”, afirma. Ela candidatou-se ao mais recente concurso do Programa de Renda Acessível da Câmara de Lisboa, que tinha 30 casas para sortear, e tem andado a procurar no mercado. “Pedem 750, 800 ou 900 euros. Os preços ainda não baixaram nada”, queixa-se Livramento Rodrigues, outra inquilina, actualmente no desemprego. “Eu escrevi para o IPO e responderam-me que a data de saída era a que estava na carta. Expliquei que andava à procura de casa, mas as rendas estão impossíveis”, diz a moradora Isabel Silva, também desempregada.

O caso chegou ao conhecimento da Junta de Freguesia da Misericórdia (que esta quinta se reuniu com a administração do IPO) e da Associação dos Inquilinos Lisbonenses (AIL), que pediu à Câmara de Lisboa que interviesse. “A atitude do IPO é, a nosso ver, completamente deslocada, desrespeitadora e abusiva porque os prédios lhe foram deixados por pessoas que certamente não tencionavam pôr termo aos contratos e despejar os moradores”, escreveu a AIL na carta que enviou à vereadora da Habitação, Paula Marques. “Encontrando-se o país numa fase agravada da pandemia, esta situação torna-se mais estranha, e até imoral, quer por advinda do IPO, que é uma entidade pública e do ramo da saúde, quer por contribuir para a desprotecção das famílias e da estabilidade do arrendamento”, acrescenta a associação.

Paula Marques deslocou-se à Rua Cruz dos Poiais na semana passada e pediu explicações ao IPO. “Da minha conversa com o presidente do conselho de administração não fiquei com grande dúvida de que a sua intenção é alienar este edifício”, explica a autarca. “Estranho que haja uma atitude destas do IPO. É uma entidade pública com responsabilidades na área da saúde. Estou a tentar perceber como é que numa situação de emergência, em que estamos a pedir às pessoas para ficarem em casa, há uma entidade pública que decide pôr fim ao contrato de arrendamento de nove famílias”, afirma a vereadora.

O assunto também já foi discutido na assembleia municipal, onde os eleitos do PCP fizeram aprovar uma recomendação para que a câmara encontre uma solução para os inquilinos, “nomeadamente através da aquisição por parte da CML deste prédio”. Esta hipótese agrada aos moradores, mas é um desfecho improvável. A autarquia tem resistido a fazer compras de imóveis nestas situações, argumentando que isso abriria um precedente de consequências imprevisíveis.

“Lutarei ao lado destas pessoas para que isto não aconteça”, afirma Paula Marques. Os inquilinos parecem decididos: “Estamos todos juntos, ninguém sai daqui”, diz Isabel Silva.

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